Um dos argumentos usados na defesa das touradas em Portugal é o lado solidário da festa com a promoção de espetáculos tauromáquicos em benefício de diversas causas e recolha de fundos para diversas instituições.
Já houve até quem se lembrasse de organizar uma tourada em Vila Franca de Xira em benefício de uma associação de proteção aos animais, imagine-se.
Reconheço que essa vertente solidária existe, embora cada vez mais instituições dispensem a generosidade da indústria tauromáquica, recusando-se a associar o seu nome a um espectáculo, violento, cruel e cada vez mais longe de reunir consenso na sociedade portuguesa.
O lado solidário da ‘festa’ tem por isso, na sua origem, uma solução estratégica para salvar as touradas da extinção
É preciso recuar no tempo para compreender como surgiu esta vertente solidária da “festa” de touros no nosso país. Ela tem uma justificação e uma razão de ser, e está relacionada precisamente com a contestação de que sempre foi alvo.
As corridas de touros de beneficência surgiram após a abolição das touradas, decretada em 1836. Por pressão das Misericórdias (proprietárias da maioria das praças de touros) e da Casa Pia de Lisboa (proprietária da praça de touros do Campo Pequeno), as touradas foram novamente autorizadas, mas apenas se a receita delas proveniente fosse destinada a fins de carácter social.
Foi a forma encontrada na época para dar alguma dignidade a um tipo de divertimento, que já na altura, era considerado bárbaro e impróprio de uma nação civilizada. Presume-se que também fosse uma medida para impedir que o divertimento bárbaro se tornasse num negócio.
Após o susto provocado pela proibição decretada por Passos Manuel, os empresários tauromáquicos e aficionados das touradas agarraram esta oportunidade para continuar a desfrutar do seu passatempo favorito, e evitar que ele desaparecesse do nosso país, começando a organizar corridas de touros em benefício de qualquer instituição que na época se encarregasse do apoio social, e até há registos de touradas promovidas em benefício de toureiros.
Atualmente os espetáculos de beneficência designam-se “Festivais Tauromáquicos” e de acordo com a legislação, permitem a utilização de “reses” sem idade ou peso mínimos, o que facilita a realização de eventos com custos inferiores para os promotores.
O lado solidário da “festa” tem por isso, na sua origem, uma solução estratégica para salvar as touradas da extinção e para se promover touradas mais acessíveis, e não, um caráter solidário verdadeiramente genuíno.
Vem isto a propósito do sucedido nos últimos dias, com a polémica questão da introdução nas Festas de Benavente dos “touros de fogo”, ao mesmo tempo que alguns empresários tauromáquicos e toureiros, anunciavam publicamente a sua disponibilidade para realizar uma corrida de touros a favor das vítimas dos incêndios em Portugal. Largar touros com os cornos em chamas pelas ruas, ao mesmo tempo que se demonstra solidariedade pelas vítimas dos fogos é para muitos cidadãos um chocante contrassenso difícil de compreender.
Mas o “mundillo” tauromáquico é mesmo assim. Um meio onde os seus intervenientes assumem uma grande paixão pelos seus animais (cavalos, cães, gatos,…) mas se sentem realizados e apaixonados pela “arte” de cravar lâminas afiadas com grande vigor em bovinos em desvantagem, provocando hemorragias e lesões profundas nos animais, que são sujeitos a uma lenta agonia que termina no matadouro, onde é levado a cabo o último tércio de uma lide demorada e sangrenta.
Conheço suficientemente bem o meio tauromáquico em Portugal para saber que não é verdade que estas pessoas se divirtam com o sofrimento dos animais, e que efetivamente muitas sentem carinho, preocupação e empatia pelos seus animais de estimação. Da mesma forma que nenhuma pessoa vai a uma praça de touros especificamente para aplaudir o sofrimento e a tortura de animais, como frequentemente se diz, mas para apreciar a mestria dos cavaleiros, a performance dos bandarilheiros e a bravura dos forcados.
O pequeno “mundillo” tauromáquico é efetivamente muito particular. Pertence a outra época, com outros valores e não pode ser compreendido pela sociedade atual. Por isso se esforçam, pensam e investem cada vez mais no marketing, tentando encontrar soluções para conseguir alterar a sua imagem e seduzir a sociedade portuguesa.
Tarefa difícil, diria até impossível, e que leva a situações completamente bizarras e incompreensíveis, como a organização de touradas em benefício da proteção aos animais, ou a solidariedade com as vítimas dos incêndios numa semana em que se promoveu a “tradição” macabra de largar touros a arder nas ruas de Benavente.
A tauromaquia é um mundo à parte, uma exceção, numa sociedade que se quer civilizada, e que mais cedo ou mais tarde eliminará estas práticas anacrónicas, que nunca foram, e jamais serão aceites na nossa sociedade.
Sérgio Caetano, jornalista. Junho de 2017.