Requerimento a sua magestade El-Rei pedindo a abolição das touradas em Portugal

SOCIEDADE PROTECTORA DOS ANIMAES

REQUERIMENTO A SUA MAJESTADE EL-REI PEDINDO A ABOLIÇÃO DAS TOURADAS EM PORTUGAL

3 de Junho de 1876 

SENHOR

Perante Vossa Magestade Fidelissima vem a Sociedade Protectora dos Animaes invocar a attenção de Vossa Magestade, como homem e como Magistrado Supremo, para um ponto em que interessam a um tempo a observancia da lei, os costumes, e a civilisação. Vossa Magestade Se Dignará de tomar como ellas lh’o merecerem as nossas ponderações, e Attenderá sem duvida ao multiplice fim que levamos em vista.

Tudo quanto tender, directa ou indirectamente, para extirpar dos usos nacionaes os restos da barbárie de antigas eras, amaciar os animos, e espalhar idéas sensatas, suaves, e compassivas, é da estricta obrigação d’esta Sociedade lembral-o, pregoal-o, e persuadil-o quanto podêr.

Ás auctoridades constituidas (sabe-o Vossa Magestade para ventura d’esta nação) compete propagar aquellas idéas sãs, empregar todos os meios para desenvolver no povo as tendencias humanitarias, e arrancal-o aos perigosos entretenimentos, que lhe acordam no peito o desamor, a ferocidade para com os animaes, e a final lhe endurecem o coração para com os seus proprios semelhantes.

Entre os usos mais barbaros figuram em primeiro logar as repugnantes, as inqualificaveis corridas de touros, vestigio das civilisações cahoticas e sanguinarias de outros tempos, descendencia espuria dos circos romanos, escarneo às idéas modernas, conservado para opprobrio da Peninsula em face da Europa culta, christă, e utilitaria, e em pleno seculo XIX!

Não ha principio que as defenda; não ha lei que as auctorise; não ha consideração, que não as condemne bem alto.

Vamos demonstral-o.

I

Não ha principio moral que defenda as corridas de touros. Martyrisar durante horas, e sem motivo, uns desgraçados animaes, arrancados ao seu meio, à sua vida pacifica, arrastados a grande custo, e com grande risco, a enormes, distancias, é (pelo menos) prova de uma ociosidade de animo e de uma crueza notaveis; muito mais, se considerarmos que as victimas são, antes de entrarem na praça, barbaramente espicaçadas a pampilho no recinto de poucos palmos que lhes serve de jaula, a fim de se acordar n’ellas maior furia, isto é mais pretextos a maior supplicio.

Acabada a tourada, chega, em vez do descanço, o chamado curativo. O curativo das feridas feitas a sangue frio por homens adestrados n’aquelle triste mister, é talvez mais atormentador do que os dois supplicios que se acabam de infligir.

E quem auctorisa o homem, o rei magnanimo da creação, a fazer das dores de algum ente vivo o joguete para horas frivolas, a suppliciar esses bons animaes, dos mais uteis sem duvida, dos nossos mais prestadios servidores, os bois, companheiros e instrumentos das lidas agrarias, servos constantes, e não salariados, do lavrador!?

Quem permitte a praça de touros, ignobil e ridiculo Colliseu de taboas pintadas, recinto immoral, onde a crueldade se arvora praticamente em principio, a vir desmentir com ironias as doutrinas puras da escola primaria, onde se inoculam theoricamente nas creanças as idéas de compaixão e protecção para com os irracionaes?

Vir-se-ha ainda invocar , pela millesima vez, a usança, a posse consuetudinaria, para justificar as corridas?
fraco argumento na verdade, ante o qual cairiam sem duvida por terra todas as reformas, por mais uteis, por mais instadas!

Não confundamos a tradição, esse archivo sui generis das nações, com as praticas e costumagens da plebe inculta. Nada mais alto, Senhor, nada mais nobre, que as commemorações do passado; nada mais augusto, que a tradição dos povos. Nada mais odioso que o preconceito, enferrujado grilhão da nossa escravidão moral.

Adduzir-se-ha ainda o exemplo da nossa briosa visinha, a Hespanha, onde (pela força do vezo) as corridas são bem mais barbaras do que em Portugal? Mas essa sombra de rasão não poderia colher, visto que o pessimo alheio não justifica nunca o nosso mau.

Julgar-se-ha defender as touradas affirmando serem ellas clara prova da dextreza dos cavalleiros e capinhas, signal do seu sangue frio e da sua hombridade, e mostra brilhante da victoria do engenho sobre a força? Mas, por Deus! quando tantas outras demonstrações podem blazonar aquelles luctadores da sua pericia e do seu valor, porque hão-de assim escolher para taes alardos o mais condemnavel dos passatempos, praticando sevicias inuteis, e (o que é mais grave) expondo a vida n’uma lucta ingloria, sem alvo nobre, sem motivo que saiba ao menos justificar os meios?

Passemos ao segundo ponto.

II

Não ha legislação que auctorise as corridas de touros, porque se ellas em realidade se acham hoje intimamente odiadas pela opinião publica, não se pode affirmar que não estejam prohibidas pelo espirito das leis.

Quando nos remontàmos ás origens, diz-nos a historia que as hecatombas, em que a mão dos sacrificadores pagãos immolava aos deuses mythologicos tantos animaes, tinham a sua atenuante na idéa religiosa de então, unica motora d’aquelles sacrificios crueis. A philosophia pois entende, e até certo ponto quasi justifica, tamanhas atrocidades. As touradas porém não as póde entender, quanto mais absolvel-as!

Auctores ha, que attribuem ás nossas corridas origem romana: e foi ella, que desejando o Rei Tarquinio o Soberbo distrahir de certas preoccupações supersticiosas o seu povo de valentes, instituira, segundo é fama, apparatosissimos combates, d’onde vieram a derivar-se as monstruosidades, que durando seculos enxovalharam a arena do circo romano.

Com a extensão do dominio imperial, estabeleceram-se os circos por toda a parte, como é notorio. Teve-os a Italia inteira, teve-os a Gallia, a Germania, a Iberia; teve-os até o Oriente. Pela queda do imperio acabaram os gladiadores, mas ficaram, quasi substituição d’elles, as pugnas ferinas das justas e torneios, origem dos duellos modernos, e em muita parte as circenses anachronicas das touradas, ainda hoje em todo o seu esplendor.

Não importa averiguar aqui, Senhor, o porque estes jogos barbaros não foram tão bem logrados nas regiões do norte; e o como a civilisação, na sua marcha vencedora, ao passo que os expungia d’aquellas terras, os obrigava a entrincheirarem-se para aquem dos Pyrenéos, como partilha derradeira das eras do obscurantismo aos chamados africanos da Peninsula. É porém de temer, que, na opinião da Europa culta, a solução áquelles quesitos redunde na miseranda suspeita da pouca altura do nosso nivel moral.

Ha quem pense , que se ainda em Portugal existem as touradas, é porque as conservam na Hespanha. A visinhança de Castella trouxe-nos effectivamente sempre nos usos e opiniões certa paridade, que seria facil demonstrar. Mas hoje, que esta boa terra, graças aos esforços dos governantes, á melhor intelligencia das nossas liberdades, á paz que desfructâmos, e em summa, a um concurso de circumstancias fortuitas auspiciosissimas, se acha no caminho de todos os progressos, podemos tentar confiadamente, e de uma vez para sempre, uma reforma radical, abolindo as touradas, o que importará um melhoramento maior do que á primeira vista pareceria, na educação e moralisação do povo; e façâmos votos para que a nobre e cavalleirosa Hespanha possa, não tarde, extirpar dos seus costumes nacionaes essa importuna velharia. Para isso se trabalha, lá mesmo, e não sem fructo.

É para notar, que, tendo sido legadas á Peninsula as corridas de touros pelos invasores romanos, e conservadas talvez pelos visigodos, foram proscriptas quando sobreveio a illustrada dominação arabiga. É que aos novos povoadores, filhos civilisados de raça culta e artistica, repugnavam, e com rasão, aquellas inuteis e absurdas crueldades. Quereremos nós hoje, nós, os portuguezes do seculo das luzes, ser menos sensatos do que os nossos mouriscos avoengos do seculo VIII?

Como quer que fosse, expulsos a pouco e pouco da Peninsula os agarenos, voltaram os povos á sua sabida e arrogante parodia de guerras, e não houve mais festa sem touros. Pan y toros ficou a traducção castelhana do panem et circenses.

Eram tão evidentemente uma instituição inutil e pessima em tempos christãos as justas do touril, que á vigilancia paternal do Santo Padre Pio V não escaparam os damnos que d’ellas resultavam. Do alto do solio do Vaticano baixou, para honra da razão humana, a celebre Bulla de 1 de novembro de 1567 1.

1. Bull. rom. Ed. taurin. T. 8, pag. 630.

Vamos transcrevel-a traduzida na sua integra; é um documento nobilissimo; é um brado civilisador; escutemol-o:

«Pio, Bispo, servo dos servos de Deus, para perpétua memoria:
Sollicitos na salvação do rebanho do Senhor, confiado por determinação divina aos nossos cuidados, e coagidos dos deveres do nosso officio de pastor, procurâmos de continuo affastar a todos os fieis dos perigos que sempre os ameaçam, tanto do corpo como da calma. Certamente o uso abominavel dos duellos, diabolica invenção, causa da desgraça de corpos e almas em morte cruenta, foi prohibido por determinação do Concilio tridentino. Todavia ainda hoje em varias cidades e outros logares , muitos homens, para alardo de suas forças e denodo, em espectaculos publicos e particulares não cessam de acommetter touros e outras bestas feras; do que muitas vezes proveem mortes a homens, mutilações a corpos, e perigos a almas.
Nós portanto, considerando que esses espectaculos de se correrem touros e outras feras em corro ou praça, são alheios da piedade e caridade christă; e querendo desterrar esses jogos sanguinolentos e impios, mais de demonios do que de homens, e providenciar, quanto com ajuda de Deus podemos, á salvação das almas; a todos os Principes christãos, e a cada um em particular, dos constituidos em qualquer dignidade tanto ecclesiastica como temporal, ou imperial, ou real, ou de qualquer outra sorte, e seja qual fôr o cargo que exerçam; ou a quaesquer communidades e republicas, prohibimos e vedâmos por esta nossa Constituição, válida para sempre, e sob as penas de excommunhão e anathema, em que hão-de incorrer se a isto contravierem, que em suas provincias, cidades, senhorios, villas e logares, permittam espectaculos d’este genero, em que se correm toiros e outros animaes. E aos cavalleiros militares, e a outras quaesquer pessoas defendemos que jamais entrem, quer a pé quer a cavallo, nos supraditos espectaculos. E se algum lá morrer, não se lhe dê sepultura ecclesiastica. Aos clerigos não menos, tanto regulares como seculares, e a todos os providos em beneficios ecclesiasticos, ou que tiverem ordens sacras, prohibimos, sob pena de excommunhão, que entrem em taes espectaculos. E cassâmos todas as obrigações de juramento e votos contrahidas seja por quem fôr, ou que de futuro hajam de contrahir-se perante qualquer universidade ou congregação, de entrarem n’estes jogos de touros, ainda que (segundo a opinião falsa d’essas pessoas) seja para honrar os Santos, ou qualquer solemnidade ou festividade ecclesiastica; porque os Santos e a Igreja só com louvores divinos, gosos espirituaes, e obras pias se devem celebrar e honrar, e não por aquella fórma; e esses juramentos e votos havemos e declarâmos por vãos, nullos, e irritos para sempre. E isto tudo recommendâmos a todos os Principes, Condes, e Barões feudatarios á Santa Igreja de Roma, sob pena de privação dos senhorios que lhes proveem da mesma Igreja romana. E a todos os outros Principes christãos e senhores de terras supramencionados exhortâmos em nome do Senhor, e em virtude de santa obediencia recommendâmos, que, pelo respeito e honra que lhes merece o nome de Deus, façam cumprir e guardar exactamente nos seus senhorios e terras todo o acima estatuido, certos de virem a receber do proprio Deus por tão boa obra as maiores mercês. E a todos os nossos veneraveis irmãos Patriarchas, Primazes, Arcebispos, e Bispos, e a todos os outros Ordinarios de logares, em virtude de santa obediencia, e tomando por testemunha o juizo divino, e com ameaça da eterna maldição, ordenâmos que nas suas cidades e dioceses façam publicar, quanto seja bastante, estas nossas lettras, e procurem, até com penas e censuras ecclesiasticas, que seja observado todo o supra ordenado. Não obstantes quaesquer constituições e ordenações apostolicas, privilegios, indultos, faculdades, lettras apostolicas, que todas havemos por derrogadas, etc., etc., etc. Dada em Roma, em S. Pedro, no anno de 1567 da Encarnação do Senhor, nas kalendas de novembro do anno 2.º do nosso pontificado.»

Oito annos vigorou de direito a Bulla do Summo Pontifice Pio V, mau grado aos toureiros da Peninsula.

Foram porém mais válidas junto aos conselheiros de Gregorio XIII as instancias e pressões do Rei Filippe II de Castella, do que os dictames de caridade que inspiraram a Pio V. Em 25 de Agosto de 1575 baixou a Bulla Exponi nobis nuper fecit levantando as excommunhões impostas aos lidadores ferrenhos da tauromachia. O dia 25 de Agosto é de festa magna nos annaes da grande arte.

Então voltaram dias aureos ao corro portuguez. Como respiro dos oito longos annos da prohibição, celebraram-se por toda a parte, e em grande esplendor, as corridas mais fidalgas que possam imaginar-se. A nobreza, a côrte, os Principes, El-Rei, não deixaram de entrar com jubilo em taes torneios. Ao animo aventureiro do moço Senhor D. Sebastião, glorioso antepassado de Vossa Magestade, apraziam sobre modo aquellas justas, que em tempos de enthusiasmo fanatico lhe alembravam por longe as fadigas da guerra, e como que o deixavam saborear-se de ante-mão no doce-amargo das suas meditadas expedições em terras de Africa.

O que é porém para notar é que, mesmo antes da larga licença de Gregorio XIII em 1575 , já o juvenil Monarcha (mal aconselhado sem duvida) se não podéra ter que não celebrasse, muito ás claras , uma ou outra vez, touradas de grande fama. A primeira vez que tal se viu foi um Domingo 4 de Janeiro de 1573, em Beja, onde El-Rei se achava de visita. 2

A concessão unica feita ao espirito prohibitivo da Bulla de S. Pio V foi o cerrarem as pontas aos bois, o
que d’antes se não usava.

Tanto póde o uso! tanto impera o vezo de seculos nos costumes dos povos!

Outra vez (fôra a 24 de Junho de 1575) para divertir os pensamentos de El-Rei D. Sebastião, totalmente occupados na jornada de Africa – diz um historiador 3inventou a cidade de Lisboa umas festas no terreiro do palacio da rainha D. Catharina situado junto do convento de Xabregas. Depois da descripção da praça e dos jogos de canas, diz o chronista que entrou El-Rei em pessoa no combate com os touros, que eram ferocissimos, e que de tal arte se houve, que o acclamaram com grande vozeria os espectadores.

1. Bull. Rom. Ed . taurin. T. 8, pag 129 .
2. Hist. Sebast. por Fr. Manuel dos Santes, pag, 279.
3. Diogo Barbosa Machado – – Mem. para a hist. d’El-Rei D. Seb. T. 4, pag. 8

Tanto impera (repetimos) no animo dos povos o vezo dos seculos!

Um mez depois baixou a Bulla pontifical.

D’ahi em diante, quem não conhece, ao menos pela fama, os annaes tauromachicos da Lisboa aristocratica dos seculos XVI, XVII e XVIII? Festas foram verdadeiramente realengas muita vez. Que o attestem o Terreiro do paço, o Rocio, Xabregas.

Improvisem-se na phantasia os vistosos circos apalancados a orlarem as praças, sob as varandas dos paços da Ribeira, dos paços dos Estáos, ou dos paços de Enxobregas. Os altos palanques de tres andares aderessados de razes, veludos, e damascos franjados, povoem-se da primeira grandeza do reino em trajos de gala.

Tangem em concerto os varios instrumentos, e soam a espaços as gritas alegrissimas do povo; no corro justam os mais galbardos cavalgadores com as feras mais fogosas das leziras ribatejanas; e pleiteiam entre si garridice e pujança bandarilheiros com cavalleiros, forcados com matadores, todos com o denodo de quem investe, pela Patria e pelo Rei, mamelucos na moirama.

Eis ahi a tourada.1

1. Colmenar – Annales d’Esp. et de Port. T. IV. pag. 1 e seg.

Triste esplendor aquelle, que ainda hoje nos deslumbra, e tantos olhos cegou! Tristissimo preconceito (ainda hoje não extincto) o que assim erguia aquelles lidadores do corro á cathegoria de heroes, e como que realçava, perante a opinião de uns certos, o quilate heraldico dos seus brazões.

Ha vestigios de que, mais de uma vez, em varios tempos, se tentou reprimir ou prohibir as touradas na nossa terra. Foram porém de pouca duração os effeitos d’essas prohibições, quasi sempre, segundo parece, meramente regulamentares e sem força de lei. Citaremos antes de mais nada uma disposição da maior importancia no nosso caso: é do Cardeal Infante o Senhor D. Henrique, o qual, n’uma das Constituições do Arcebispado de Lisboa, prohibe expressa e terminantemente o duro divertimento dos touros, e transcreve, como lhe cumpria, em nome da Santa Sé, quasi toda a prohibição imposta pelo Papa Pio V na sua notavel Bulla, já citada, de 1 de Novembro de 1567.

Alem da mencionada disposição das Constituições synodaes do Arcebispado, o governo dos Senhores Reis D. Affonso VI e D. Pedro II, antecessores de Vossa Magestade Fidelissima, providenciou com energia no sentido repressivo das crueldades e dos perigos das touradas em Portugal. Haja vista o decreto de 14 de Setembro de 1676, que é o seguinte:

Decreto
«Ao Senado da Camara d’esta cidade ordenei que aos touros que ultimamente se correram mandasse cortar as pontas, pela experiencia ter mostrado que havendo éstas festas sem esta prevenção succediam muitas mortes. E porque aos touros que se correm nas mais partes do reino convem se faça a mesma diligencia, o Desembargo do Paço passe aos Ministros que tocar ordens para que se não possam correr touros sem que atenham as pontas cortadas .
Lisboa 14 de Setembro de 1676. – Com a rubrica de Sua Alteza . (O Senhor D. Pedro II, ainda Regente.)»

Saiu dez annos depois, no mesmo sentido , a lei de 24 de Fevereiro de 1686 :

Lei
«D. Pedro por Graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’alem mar em Africa, Senhor de Guiné e da conquista, navegação e commercio da Ethiopia, Arabia, Persia e da India, etc. – Faço saber aos que esta minha lei virem, que sendo-me presente que em muitas partes d’estes meus reinos e senhorios se correm touros em algumas festas, e sendo a introducção d’esta celebridade permittida em occasiões de gosto tem mostrado a experiencia que de se não cortarem as pontas aos touros succedem muitos ferimentos e mortes inopinadas, tanto em prejuizo do bem publico e serviço de Deus e do meu e ainda contra o mesmo fim para que se introduziram as ditas festas, e querendo atalhar os riscos que d’aqui se seguem por não servirem até agora de sufficiente remedio as ordens que sobre este particular mandei passar, por se experimentarem cada dia os mesmos damnos, desejando eu evital-os por todos os meios possiveis, e que as taes festas que n’estes meus reinos e senhorios por costume antigo se introduziram em demonstração de alegria e para divertimento publico dos povos não seja motivo para experimentarem meus vassallos em semelhantes occasiões o menor prejuizo: Hei por bem e mando que d’aqui em diante, em qualquer parte d’estes meus reinos e senhorios nenhuma pessoa de qualquer qualidade e proeminencia que seja consinta nem mande correr touros, sem primeiro lhes mandar serrar as pontas em forma conveniente, que notoriamente reconheça não possam fazer damno algum; e as pessoas que assim o não fizerem e n’esta lei forem comprehendidas, sendo nobres pagarão, etc. etc. – 24 de fevereiro de 1686 – Francisco Galvão a fez escrever. – Rei»

Tornou El-Rei a insistir no mesmo ponto na sua lei de 20 de Setembro de 1691, que, por não offerecer novidade, não transcrevemos.

Ha mais do mesmo tempo o decreto de 28 de Agosto de 1684, a provisão de 3 de Setembro de 1685, a provisão de 24 de Agosto de 1691, e o decreto de 14 de Agosto de 1698. Não podemos encontrar aquelles documentos.

No tempo d’El- Rei D. José expediu-se a carta regia de 26 de Agosto de 1767 á camara da villa de Abiul, enviando-lhe copia de uma carta severissima ao reverendo Bispo de Coimbra, o qual tinha prohibido os touros na festividade de Nossa Senhora das Neves na dita villa. N’essa carta diz El-Rei ao Prelado que nada tem que ver com os touros, e se não intrometta no que lhe não pertence. Significa pouquissimo como doutrina. Espanta porém como um Soberano, que vira com os seus proprios olhos em 1762 morrer espedaçado ás pontas de uma fera um dos seus fidalgos mais distinctos e de maiores esperanças, como era o Conde dos Arcos, vingado no mesmo campo por seu allucinado pae o velho Marquez de Marialva, formula uma tal exprobração contra quem, como o Bispo Conde de Arganil, fizera, á luz da religião e dos bons costumes, o seu dever, intentando extirpar do seu districto ecclesiastico aquella causa de tantas mortes desastradas.

«Não ha tanta gente n’estes reinos, que se possa dar um homem por um touro » – diz o distinctissimo prosador portuguez Rebello da Silva no seu escripto admiravel A ultima corrida de touros reaes em Salvaterra, opusculo que é só por si a mais eloquente das verrinas contra as touradas.

Em tempo d’El-Rei D. João VI (ainda Regente) é sabido que houve da parte do seu governo decidido empenho em acabar as touradas, empenho que as circumstancias mallograram infelizmente. Citaremos apenas o Aviso regio de 7 de Julho de 1809, prohibindo que se dessem touradas sem que precedesse expressa licença muito especial d’El-Rei. Muito para se lerem são os considerandos do intendente geral da policia em sua informação de 26 de Agosto do mesmo anno, e outras informações analogas da dita auctoridade.

Na época liberal, no anno de 1836 , durante o celebre ministerio de Passos Manuel, baixou felizmente um decreto da sempre saudosa Rainha, a Senhora D. Maria II, digna mãe de Vossa Magestade Fidelissima, datado de 19 de Setembro, e concebido no mesmo espirito christão e sensato. Eis aquelle significativo documento, que tão glorioso é para a virtuosa Soberana que o assignou, como para o ministro que o referendou:

Decreto
«Considerando que as corridas de touros são um divertimento barbaro e improprio de nações civilisadas, e bem assim que semelhantes espectaculos servem unicamente para habituar os homens ao crime e á ferocidade; e Desejando Eu remover todas as causas que podem impedir ou retardar o aperfeiçoamento moral da nação portugueza: Hei por bem Decretar que d’ora em diante fiquem prohibidas em todo o reino as corridas de touros.

O Secretario de Estado dos Negocios do Reino assim o tenha entendido e faça executar. – Palacio das Necessidades em 19 de Setembro de 1836. – RAINHA – Manuel da Silva Passos.»

Por desventura veio a Carta de lei de 30 de Junho de 1837 derrubar a sabia providencia da dictadura, e restituir ao povo de Lisboa os seus dilectos gladiadores embolados. Eis os termos frisantes da

Carta de Lei
«D. Maria por Graça de Deus e pela Constituição da Monarchia Rainha de Portugal e dos Algarves, d’aquem e d’alem mar em Africa, etc.; Faço saber a todos os meus subditos que as Côrtes geraes extraordinarias e constituintes da nação portugueza decretaram, e Eu sanccionei, a lei seguinte:
As Côrtes geraes extraordinarias e constituintes da nação portugueza decretaram provisoriamente o seguinte: Artigo unico: – Fica revogado o decreto de 19 de Setembro do anno proximo passado, e todas as mais leis que prohibem as corridas de touros, salvos os regulamentos policiaes a que ficam sujeitas, como qualquer outro espectaculo publico. Portanto mando ás auctoridades, a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e executem tão inteiramente como n’ella se contem.
O Secretario de Estado dos Negocios do Reino a faça imprimir, publicar, e correr. Dada no palacio das Necessidades em 30 de Junho de 1837. – A RAINHA com rubrica e guarda – Antonio Dias de Oliveira


Reflicta-se no erradissimo passo que foi esta revogação! se ella não tivesse vindo, estes quarenta annos que passaram tinham já affeito o nosso bom povo a prescindir da tourada, assim como hoje prescinde de tanto entretenimento grosseiro e semsabor, que em tempos que lá vão fizera as delicias dos sinceros e chãos portuguezes. Haja vista, por exemplo, o entrudo importuno, desbragado, hottentotico, da Lisboa velha, entrudo tantas vezes, e com tanta justiça, condemnado por decretos e editaes! compare-se aquella saturnal insolente com o carnaval já meio civilisado d’estes ultimos tempos, festa mais moderada, mais polida, bem mais consentanea aos costumes modernos. Perderia na troca o nosso povo? não; e elle proprio o reconhece.

Mas voltemos ao ponto onde ficáramos, e passemos pela vista mais alguns actos das auctoridades relativos ao assumpto que n’este momento nos desvela.

Em Carta de lei de 21 de Agosto do mesmo anno de 1837 é doado ao cofre de estabelecimentos pios o producto das corridas de touros.

Em 17 de Maio de 1845 (salvo o erro) providenceia-se ácerca da conducção dos touros.

Em 21 de Julho de 1858 tenta-se prevenir os desastres, infelizmente frequentissimos, occorridos fóra da praça, nos sitios mais centraes de Lisboa, desastres de que muitas vezes foram victimas cidadãos pacificos e inermes, que enganadamente se confiaram nas seguranças policiaes, a que todos teem direito.

Eis aqui os termos d’essa portaria singularissima. N’ella se vê a rasão escravisada pelo uso, sacrificando ainda nas caras do preconceito, debatendo-se já por vencer aquelle estranho predominio, e não conseguindo a plena victoria a que tem jus:

Portaria
«Constando n’este Ministerio (o do Reino) que, por occasião da vinda do gado bravo para as corridas da praça do Campo de Sant’Anna, se praticam toda a sorte de tropelias, não só por parte dos curiosos que vão esperal-o, mas por muitos individuos nas ruas do transito, afim de se extraviarem os bois da manada, e se disseminarem isolados pela capital, com o que se ha dado logar a muitos sinistros, e a pôr em risco a avida de pessoas, que desprevenidas se recolhem a suas casas, como aconteceu com a manada que ultimamente foi conduzida á dita praça, do que proveio não só risco de vida de um soldado de cavallaria da guarda municipal, mas prejuizo para a fazenda publica com a morte do cavallo que elle montava, e que um dos bois extraviados estripou; chegando a imprudenacia e excesso dos provocadores de semelhante desordem a ponto de lançarem bombas ao gado, e até a fazerem rastilhos de polvora com fogo de estalo nas ruas e nas estradas; e devendo acabar por uma vez tão reprovado e nocivo brinquedo, de que podem resultar mui graves consequencias:

Manda Sua Magestade El- Rei que o Governador Civil do Districto de Lisboa, pelo que respeita aos factos acontecidos quando veio o gado bravo para a ultima corrida na indicada praça, faça proceder ás mais minuciosas e exactas averiguações policiaes para se descobrirem os culpados, e serem autuados e relaxados ao poder judicial, para os punir conforme o direito; e pelo que toca ao futuro, que faça rondar incessantemente por escoltas de cabos de polícia, nas noites em que tiver que entrar alguma manada para as ditas corridas, todas as ruas do transito, desde as portas da cidade até á mencionada praça, pelo espaço de tempo razoavel e necessario até ser recolhida; não consentindo ajuntamentos n’ellas, e menos ainda provocações de qualquer natureza que sejam, para espantar os bois; aprehendendo os mesmos cabos em flagrante os que contravierem esta real ordem, ou dando parte ao Administrador do respectivo bairro, quando os não possam aprehender, a fim de os autuarem, e relaxarem ao poder judicial para os effeitos devidos. Paço em 21 de Julho de 1857 – Marquez de Loulé

Posteriormente tratou-se de evitar aquellas ruidosas esperas do gado até ao Lumiar, até Carriche, até Friellás, cortejos sui generis, praso dado turbulento dos mais heterogeneos elementos da sociedade, festas pouco dignas, que faziam as delicias de um certo numero de ociosos e ociosas, e augmentavam sempre, com grande jubilo de uma parte minima do publico, o picaresco ou o dramatico das partes policiaes. Oiçamos sobre isso o Edital do Governo Civil de Lisboa de 16 de Maio de 1861:

Edital

«Antonio Cabral de Sá Nogueira, Governador Civil do Districto de Lisboa , etc.
Tendo-se repetido com frequencia o caso de ficarem maltratados os viandantes inoffensivos pelos touros que se tresmalham durante a conducção do gado bravo destinado para as corridas na praça do Campo de Santa Anna, provindo quasi sempre estes desastres da concorrencia de individuos estranhos, que costumam ir ao encontro do gado, e acompanhal-o no seu transito; e sendo de necessidade prevenir que se renovem taes coccorrencias, prejudiciaes à segurança publica, e incompativeis com a boa policia; usando das attribuições que me confere o artigo 227 § 1.º do Codigo Administrativo, determino o seguinte:


1º – É prohibido a quaesquer individuos estranhos á conducção do gado acompanharem este desde a ponte de Friellas até á entrada na praça;

2º – Os que contravierem esta disposição serão presos, e conduzidos á auctoridade administrativa para serem depois de autuados entregues ao poder judicial, e ahi processados correccionalmente como desobedientes aos mandados da auctoridade . E para que cheguem ao conhecimento de todos , e se não allegue ignorancia, mandei publicar o presente, que será affixado nos loagares do costume.

Lisboa, 16 de Maio de 1861 – Antonio Cabral de Sá Nogueira»

Finalmente no nº 9 da Ordem do Exercito de 28 de Agosto de 1855 estatue-se que nem officiaes nem praças de pret do exercito possam entrar nas luctas tauromachicas.

E o que significará (perguntamos) esta prohibição exclusiva? significa :

1º – que as saudes e vidas dos servidores do Estado não são para se malbaratarem;

2º – que ha já um passo dado (Digne-se Vossa Magestade de notar com a sua alta rasão esta circumstancia), um grande passo adiantado no caminho da prohibição inteira e geral. É como que um protesto eloquente da auctoridade perante a propria auctoridade. Bemvinda pois a Ordem do Exercito de 28 de Agosto de 1855!

Dissémos que não ha principio que auctorise as touradas. Citámos porém a Bulla do Summo Pontifice Gregorio XIII, que revogou a de S. Pio V. Analysemos.

Que fez a Bulla de Gregorio XIII? collocar as coisas no estado em que se achavam antes da Bulla de Pio V.

E o que era esse estado? era apenas a tolerancia de um uso injustificavel, e tão injustificado, que levantava contra si a animadversão publica. Não havia lei religiosa que auctorisasse as corridas; e não a havendo, e sendo ellas uma instituição insustentavel á luz da religião e da moral social, pouco ou nada fez a Bulla de Gregorio XIII, a não ser restituir a opinião ao deploravel statu quo.

Não auctorisou as corridas, repitâmol-o; deixou só de as excommungar.

Vejamos um simile. Supponhamos (vá dito sem offensa de ninguem) que baixa uma Bulla excommungando os salteadores. Passados annos, vem outra levantando essa excommunhão. Segue-se d’abi que estão admittidos, ou legalisados, os salteadores? Mil vezes não, porque elles são contrarios a outras leis do bom senso, da rasão, e da moral; e essas, nada as póde revogar.

Dissémos que não existe lei portugueza que auctorise as touradas. Transcrevemos porém a Carta de Lei de 1837, que revoga o Decreto de 1836. Essa apparente contradicção, em que incorremos, cessa desde o momento em que se reflectir, em que o artigo 137 do Codigo de posturas municipaes de Lisboa veda terminantemente que se pratiquem em publico sevicias inuteis nos animaes. Logo, o que a lei por um lado consente, por outro lado o está sensatamente condemnando?! Não pôde ser. Não se sabe, em tal bivio, o que ha-de seguir- se com mais segurança; hesita-se, pasma-se do incompleto da lei n’este ponto, e a consciencia diz-nos que, apesar da revogação da lei de 36 , não ha lei.

Mas não é tudo.

Que fez a lei de 37? derrogar a lei prohibitiva de 36. Logo (dizem os anti-abolicionistas) – temos por nós a lei, visto que a disposição que supprimiu as touradas foi derrubada.

É verdade a segunda parte da asserção, mas não nos parece exacta a primeira. Vejamos.

Onde está a lei que determina, ou auctorisa, as touradas em Portugal?

E o uso de seculos – (respondem elles); e o que não está prohibido está permittido.

Devagar. Fallou-se no uso de seculos; mas esse só auctorisa, em direito, quando não é contrario á boa rasão; e as touradas, divertimento estólido, barbaro, e prejudicial, são evidentemente contrarias a ella. Logo, não teem lei por si; e não tendo existencia legal, não passam de um aborto, apenas tolerado pela incuria portugueza para vergonha da civilisação europêa.

III

Não ha (repitâmol-o bem alto) não ha consideração, divina nem humana, que não condemne as corridas de touros; e a prova está na indignação universal, com que (salvas excepções) os espiritos mais cultos, e os corações mais bem formados, se teem insurgido animosamente contra ellas. Condemna-as o bom senso pela boca dos maiores pensadores; e desgraçada da instituição reprovada por esse juiz inexoravel a que se chama o bom senso!

Já n’este seculo, na propria Hespanha, onde tantos adeptos e enthusiastas conta ainda a tauromachia, bastou uma lei do Rei Carlos IV para desterrar dos dominios castelhanos as touradas. Se posteriormente o Rei José Bonaparte las permittiu em nome da lei, não ha temeridade em reconhecer n’essa providencia a intenção solapada de um Monarcha intruzo, procurando lisonjear, nas chamadas tradições nacionaes inveteradas, o genio buliçoso e irrequieto do povo castelhano.

Todas essas hesitações, todas essas reconsiderações da lei o que provam é que as touradas, como instituição, não assentam hoje sobre rasões seguras, e que basta um esforço das auctoridades para as acabar de derrubar, na certeza de que a opinião geral (afora algumas vozes isoladas) ha de cobrir de applausos enthusiasticos um acto de tal ordem.

N’uma terra onde se prohibe legalmente o duello, e onde aquelle resto dos costumes feudaes se pratica na sombra, e sempre a occultas, como se póde tolerar ás claras, perante a cidade inteira, em som de festa, e ao estrondo de foguetes e musicas alegres, o estranhissimo duello de um homem com um irracional, que o não conhece, e que o não provocou?

E queira Vossa Magestade observar o contrasenso: a lei prohibe o duello, que (diga-se o que se quizer) se affigura para algumas opiniões uma insubstituivel necessidade ainda hoje, e finge tolerar as touradas!

O menos decoroso é que a lei finge tolerar por um lado (como acima vimos) o que por outro lado está claramente anathematisando.

Diz-se que a lucta é egual. Bello argumento (quando assim fosse!) egualar as posses de um homem com as de um irracional furioso!

Diz-se que a fraqueza physica do toureiro é compensada pela sua astucia. A asserção é porém inexacta: mil vantagens pendem para o lado do homem, que ainda assim corre grandissimos riscos.

O touro acha-se longe da sua lezira, fóra do seu meio, espantado do que viu, atonito do que vê. Perdeu o comer; o seu systema nervoso abala-o desusada sobrexcitação. Faminto, allucinado, affrontado nos limites de uma praça, cercado de milhares de pessoas, provocado das capas vermelhas, já a escorrer sangue antes de irromper no circo, vê- se n’elle cançado adrêde, desorientado de vozeria, estafado de sortes, exhausto em voltas curtas, e desafiado, e espicaçado, e espedaçado por muitos trasgos buliçosos e atrevidos, que uns aos outros se revezam de continuo. Perde as forças no sangue que lhe escorre, mixto da espuma da fadiga. Gloriosas, invejaveis façanhas para homens de brio!

O homem, esse é ajudado de uma alluvião de companheiros. Tem o possante cavallo em que se leva; tem a fuga da carreira; tem a trincheira aberta. Quando entrou á arena sobravam-lhe todas as forças; ajudava-o a observancia das regras hygienicas. Tem a dextreza gymnastica da longa pratica; tem o estimulo de um mal cabido pondonor; excitam-n’o artificialmente as orchestras; embriagam-n’o as palmas e acclamações; sorri-lhe a gloriola fallaz de algumas horas; tem a arte, e o sangue frio; tem o ferro, e o fogo; tem a audacia, e a rasão.

Onde está pois a egualdade? não existe; e toda a differença é quasi sempre contra o irracional . Logo, o crime do homem, a sua deshumanidade calculada e silvestre, realça-os o abuso de uma superioridade conhecida; o que torna o acto o mais indigno que é possivel da acquiescencia de uma lei sensata.
Tomamos a liberdade, Senhor, de perguntar com todo o respeito a Vossa Magestade Fidelissima: terá a auctoridade o direito de consentir que os cidadãos exponham cegamente a vida? de certo que não; e não só não tem esse direito, senão que até lhe corre a obrigação de impedir que elles a exponham sem utilidade. Não queremos já (por muito obvia) invocar a lei divina, que nos impõe como dever religioso a conservação da vida.

Restringimo-nos ás considerações meramente humanas. Porque se manteem as guardas policiaes? porque se allumiam as cidades ? porque se vedam por todos os modos os sitios que possam dar azo aos desastres casuaes , ou tentações aos suicidas? porque se prohibe a manipulação de certos venenos? Ora pois, se as touradas são uma causa e occasião possivel è provavel de aleijões , doenças, ruinas, e são quasi um verdadeiro suicidio (sem a attenuante da allucinação) , tudo impõe ás auctoridades o dever moral e social de impedir que semelhante divertimento se repita no centro de uma cidade culta, na presença de senhoras e creanças, e com todos os attractivos do luxo, da musica, e do regozijo
popular.

No verão de 1853 tentaram alguns mal avisados partidarios da tauromachia hespanhola introduzir em França as corridas. As formosissimas arenas romanas de Nîmes transformaram-se em corro; Bordeaux seguiu o exemplo; e perpetraram-se perante os modernos francezes as primeiras touradas à castelhana….

Levantou-se contra a innovação indignação geral. O’s jornaes francezes clamaram contra esta invasão barbara; o Prefeito da Gironde tomou a energica attitude que lhe competia; e o Bispo de Nîmes publicou uma pastoral eloquente no sentido humano e christão. Venceu a boa causa.

IV

A imprensa liberal portugueza (honra lhe seja) mais de uma vez tem pugnado contra esta barbara diversão.

A primeira vez , que nos conste, foi em 1842 , com obrado energico do sr. Conselheiro José Feliciano de Castilho Barreto de Noronha1.

1. Revista Universal Lisbonense- T. 1 pag. 317

N’esse notabilissimo artigo combate-se de frente a questão , e adduzem- se argumentos irrespondiveis.

Eis um trecho:

«Em nome do progresso, que abrandou os nossos habitos, da Constituição, cujo espirito supprime os escusados padecimentos coporaes, da lei, que apagou em nossos codigos as manchas de sangue, appareça de novo uma lei de bronze, declarando o divertimento nacional dos touros impolitico, immoral, impossivel.»

Fez sensação o escripto. De toda a parte concorreram adhesões valiosas, que a Revista Universal Lisbonense publicou; entre ellas citaremos apenas um nome benemerito, para quem a posteridade começou não ha muitos mezes : o do nobre Marquez de Sá da Bandeira (então Visconde). O artigo com que o venerando general verbéra as touradas é uma prova mais da cordura portugueza do seu caracter.

Já que invocâmos testemunhos auctorisados , mencionaremos no mundo litterario o do grande diccionarista e insigne linguista portuguez, o congregado D. Raphael Bluteau, que em tempos bem diversos dos nossos não duvidou de arrostar a opinião publica, è teve o animo de escrever estas palavras:

«É forçoso confessar que só o costume pode dimi« nuir o horror que causa aos olhos um corro convertido em açougue, com bramidos de animaes lardeados de garrochas, e com o perigo de muitas vidas, parvoa ou impiamente sacrificadas ao cego furor de um bruto.»

Venha agora depôr a sua opinião sensatissima o mellifluo Bernardes, que no seu Estimulo pratico se expressa por estes termos:

Os jogos de feras foram introducção do demonio, como todas as mais do gentilismo, para que o coração humano perdesse o horror á morte e derramamento de sangue humano, e aprendesse a fereza de costumes e o indomito das paixões.

Em Hespanha ainda sabe a gentilismo o jogo dos touros ; porque, por mais que o dêem por seguro e innocente, o certo é que quem gosta, ou de assistir, ou de se expôr a tal perigo, não lhe falta muito para barbaro, ou para impio.

Em uma festa de touros em Cuenca , refere Marianna que houve um tão feroz , que em uma tarde matou sete toureiros (a morte é perigosa no leito, em braços de sacerdotes : vejam que será no corro , debaixo das pontas de uma fera!) ; e accrescenta que, em vez de des« terrarem semelhante folguedo, mandaram fazer um painel por um pintor celebre, onde se via o touro com os sete mortos a seus pés, e o pozeram, para memoria do caso, em logar publico. O que a mim (diz com muita rasão o sobredito auctor) me parece que foi levantarem os cidadãos um padrão e letreiro da sua lou« cura.

Vejam se teve rasão Cassiodoro, de chamar a este exercicio jogo cruel, deleite sanguinolento, e fereza humana!»

Depois de Bluteau e Bernardes, oiçámos o nosso peregrino Frei Luiz de Sousa, que na Vida do Arcebispo¹ esculpe no metal corinthio da sua linguagem o seguinte notavel trecho:

1. Liv. VI, cap. xix

«Este (passatempo) de touros tão usado em toda Hespanha, que sem elles não ha festa de gosto para todo estado de gente, é mal recebido de todas as outras nações ; e nem os barbaros, que folgam de ter em sua casa tigres e leões , e outros animaes ferozes e sempre temerosos, o admittem . E na verdade é um passatempo, de cujo exercicio nenhum proveito resulta, e o risco é muito grande e sem nenhuma desculpa.

O jogo da pella faz o corpo agil; a lucta endurece os membros; a justa, que para briga tem pouco risco, e para festa demasiado, com tudo, o ser exercicio mili« tar a defende. Só nos touros nenhuma cousa boa ha: se são mansos, é coisa fria, aborrecem; se são bravos, poucos se correm, que não façam voar corpos ao ceo, e almas ao inferno. E que então alegrem, então sejam materia de gosto, e lhe chamem bons touros (como na verdade assim passa) é cousa indigna do que devemos ao ser humano, quanto mais de christãos; é um renovarmos as effusões de sangue dos amphitheatros gentilicos.


Não ignoro – (continua o grande escriptor) – que perdemos tempo n’este aviso, como o perderam muitas pessoas gravissimas, que por vezes o deram; mas obriga-nos o zelo do bem comum, e o officio de historiador, que é dar parecer nas matérias; e sobre tudo sabermos que um grande Santo como foi o Papa Pio V, religioso da nossa sagrada Ordem, trabalhou muito pelo tirar do mundo; e fiquem advertidos os auctores de tal espectaculo (se algum houver que passe os olhos por estes escriptos) que em boa theologia levam sobre si grande parte do sangue humano que estes touros derramam.»

Não citemos mais; superabunda o que já transcrevemos. A litteratura, a expressão suprema da razão humana, a alta litteratura portugueza (salvas excepções) condemna as touradas. Baste-nos isso. Quantos argumentos contra ellas se não erguem imponentes de força nos livros dos nossos escriptores! desde o estilo faceto e ligeiro do auctor do poema Os touros, Carvalho,

…………. em quem discordes natureza e fortuna andaram sempre,

até à prosa lyrica de Rebello da Silva, e às paginas incisivas de Herculano!

No Parlamento não faltaram vozes, que mais de uma vez invocaram contra as touradas a razão e o bom senso.

Em 1854 foi apresentado, mas não chegou a ser discutido, um projecto de lei abolindo aquelle divertimento immoral; era auctor do projecto um digno sacerdote, o reverendo José Jacintho Tavares, prior de Santa Izabel, hoje fallecido.

Em 9 de Julho de 1869 os Senhores Deputados dr. Joaquim Alves Matheus, José de Aguilar, Antonio Pereira da Silva, Augusto da Cunha de Eça e Costa, João Carlos de Assis Pereira de Mello, Fernando Augusto de Andrade Pimentel e Mello, Henrique de Barros Gomes, Antonio Joaquim da Veiga Barreira, José Dionisio de Mello e Faro, Barão da Ribeira de Pena, Henrique de Macedo Pereira Coutinho, José Augusto Corrêa de Barros, Francisco Pinto Bessa, Luiz Vicente d’Affonseca, Henrique Cabral de Noronha e Menezes, Filippe José Vieira, José Luiz Vieira de Sá Junior, e Joaquim Nogueira Soares Vieira, appresentam por mão do sr. Alves Matheus outro projecto de lei no mesmo sentido humano e christão. Este cavalheiro acompanha a sua proposta com um discurso cheio de eloquencia persuasiva, e cerrado de argumentos.

Começa por narrar, em phrase concisa e energica, os destroços causados pela dispersão, então recentissima, de uma manada de touros bravos em Lisboa, desgraça d’onde até duas mortes provieram . Depois avalia historicamente as touradas, como filhas do circo romano, e resto insustentavel das ferocidades de outras eras. Elogia, pelo muito que elle significou e significa, o decreto do grande ministro Passos Manuel, e lamenta profundamente a revogação d’aquella sabia providencia.

«Fomos nós – conclue entre applausos o orador – fomos nós o primeiro povo do mundo, que em homenagem ao direito de Deus, e à dignidade do homem, eliminou dos seus codigos a pena de morte; fomos nós, que em um dos mais afortunados e bellos dias da nossa vida politica e social, consagrámos o maximo respeito á inviolabilidade da vida humana; e fomos nós que com esse acto erguemos um marco glorioso no itinerario da civilisação; merecemos por isso que um dos genios mais fecundos e mais brilhantes d’este seculo, que um grande escriptor, que está inundando de luz os horisontes do mundo litterario, nos apertasse a mão, e nos desse cordeaes emboras, chamando-nos o povo mais, livre e mais feliz. Pois nós, sr. Presidente, que despedaçámos os postes da forca, que arrancámos a corda das mãos do algoz, que velámos e despedimos do meio de nós essa figura sinistra, que enche a humanidade de horror, e o ceo de piedade; nós que supprimimos essa irracional, anti-christã, deshumana e moustruosa entidade do homem que por officio matava homens, havemos de continuar a consentir que o touro possa ser o carrasco dos nossos semelhantes? Nós, que declarámos na lei não termos direito a tirar a vida a ninguem em nome do interesse da sociedade, havemos de tolerar que animaes bravos venham para as ruas e praças matar gente em nome e por causa de um divertimento?! Nós, que sem condolencia não podemos ver um desastre de que alguém é victima, havemos de permittir espectaculos ferteis em sangue e desastres? Não pode ser; Não deve ser, sr. Presidente. Acabem os barbaros e hediondos espectaculos das touradas; acabem em nome da elevação de caracter, que é proverbial n’este povo, mas que em taes espectaculos recebe um desmentido; acabem em nome da boa fama e da dignidade d’este paiz; acabem em nome dos progressos da civilização; acabem (visto ser tão desauctorisada a minha voz) em nome da memoria honrada, luzida e benemerita de Passos Manuel, que esta Camara pode coroar mais uma vez, convertendo em lei um dos seus pensamentos maus justos, mais humanitarios, mais civilisadores.»

Apesar d’esta insistencia eloquente, o projecto não vingou; nem sequer chegou a discutir-se!

Em 9 de Maio de 1870 finalmente , os Senhores Deputados Augusto Ernesto de Castilho e Mello, Barão da Ribeira de Pena, Joaquim Nogueira Soares Vieira, João Carlos de Assis Pereira de Mello, e Correia de Barros, formulam a renovação do projecto de lei do sr. Alves Matheus; e nada conseguem.

Paciencia. Perseveremos. Todos aquelles esforços, embora frustrados, revelam indignação latente contra o cruelissimo costume das corridas. Bemvindas pois em nome da civilisação portugueza aquellas vozes solitarias, que representam o pensar da parte mais sensata do povo portuguez.

VI

Fallámos de principes da palavra; oiçamos agora dois Principes pelo sangue, dois homens, que pela sua alta posição, e pela sua alta intelligencia, communicam a maior valia ás suas opiniões: um é Sua Magestade Imperial O Duque de Bragança, o immortal Libertador; o outro é Sua Alteza Real O actual Principe de Galles, ha poucas semanas hospede de Vossa Magestade Fidelissima.

Uma vez convidou certo fidalgo lavrador ao Augusto Duque de Bragança para assistir a uma grande tourada nas suas herdades senhoriaes. Respondeu-lhe o Libertador estas palavras memorandas:

– Não gosto de touradas. Convide-me para ver os seus novilhos lavrarem as suas terras, e lá serei; mas para os vêr atormentar, não. Sua Alteza O Principe de Galles acaba de recusar a tourada esplendida, que os mancebos de Lisboa intentavam offerecer-lhe; como já recusára outra em Madrid; ao passo que se filía nas sociedades inglezas protectoras de animaes; exemplos muito para seguir, e muito para admirar.

Essa festa projectada pelos elegantes da capital suggere-nos o desejo de rogar a Vossa Magestade que haja de oppôr-se para sempre a que se repitam esses espectaculos apparatosos, mas vazios de sentido, a que se chama vulgarmente uma tourada de curiosos.

Se as corridas pagas, e executadas por toureiros de profissão, e mercenarios, são condemnaveis aos olhos da boa philosophia, muito mais o são aquellas parodias vistosas e garridas, onde concorre toda Lisboa , e onde tantos dos primeiros nomes da nobreza historica de Portugal vão (irreflectidamente, e levados da moda) ferir uma pugna menos digna dos seus brios. Entre esses ousados mancebos alguns ha (e é de certo a maioria) cujo talento e cujas posses davam para muito mais do que para farpear touros. Tanta actividade moral e physica, o que não brotaria em favor dos progressos publicos, quando devidamente encaminhada! Triste mocidade a nossa, se não podesse mostrar, a não ser com cambios e pégas, os seus talentos e as suas aptidões!

Façâmos porém dos mancebos portuguezes o alto conceito que elles nos merecem.

N’este assumpto mencionaremos aqui, Senhor, que um dos primeiros pensadores de Portugal¹ affirma, que entre os obstaculos mais graves, que embaraçam o movimento da nossa agricultura figuram a tauromachia, e a lavoira com gado bravo; «duas barbarías – diz o illustre escriptor – duas barbarías, que mutuamente se auxiliam, e que roubam annualmente a uma agricultura sensata grande porção dos nossos terrenos de alluvião, isto é, dos nossos terrenos mais productivos.»

1. O sr. Alexandre Herculano – Jornal do Commercio de 15 de Setembro de 1874- Carta ao ex.mo sr. Carlos Bento da Silva.

Em summa: as corridas pelos curiosos nem ao menos teem por si o argumento de serem um modo de vida para os actores do espectaculo , pois quem as emprehende é a mocidade abastada e generosa, que cede sempre o fructo das suas fadigas em favor do cofre de estabelecimentos pios. Misera maneira, ainda assim, de engrossar a torrente da caridade publica! alimentar os pobres e educar as creanças á custa do sangue! Tanto é verdade, que, por melhores intenções que haja, nem sempre os fins sabem justificar os meios.

Quanto lucraria a civilisação (repitâmo-lo) applicando-se a façanhas de maior tomo as forças desperdiçadas nas luctas obscuras, infecundas, inglorias, com touros da Chamusca ou de Salvaterra! e empregando no amanho dos terrenos incultos esses valentes e briosos martyres de algumas horas!

Concluiremos com a seguinte menção.

Não ha muito tempo que uma senhora franceza,1. alma boa e generosa de certo , anciosa de concorrer
quanto podesse para a crusada (felizmente mais numerosa do que se suppõe) contra as touradas em Hespanha, offereceu a quantia de mil francos para premiar em concurso a melhor memoria no sentido da abolição radical do pessimo passatempo. É para admirar, é para registar, é para agradecer com enternecimento, o rasgo da virtuosa dama, que assim representa e nobilita o seu sexo. Honra lhe seja!

1 A viuva Daniel Dolfus.

Apressemo- nos nos outros, n’este cantinho do occidente, em dar ao mundo civilisado a prova da maior sensatez, com esta reforma, instada urgentemente, como é notorio, pela culta Europa dos nossos dias.

Em vista de todas as rasões apontadas, Senhor, e por muitissimas outras, que para mais brevidade nos abstemos de expender, a Sociedade protectora dos animaes representa com todo o respeito, mas com todo o empenho, contra o barbaro e anachronico divertimento das touradas, e pede (e ousa esperar) que Vossa Magestade tomando em consideração as razões adduzidas, movido do seu altissimo espirito, e convencido, como em seu coração de certo o está, da efficacia dos nossos argumentos, Se Digne de prohibir para todo sempre as touradas em Portugal.

Se Vossa Magestade o fizer, não será esse, à luz da educação e da moral publica, um dos actos menos significativos do seu governo.

Lisboa, Sala da Direcção da Sociedade protectora dos animaes em 3 de Junho de 1876 .

E. R. M. ce
O Presidente da Direcção – Conde de Penamacôr
O Secretario – Joaquim Carlos da Silva Heitor
O Thesoureiro – James Garland
Conde de Geraz do Lima
Ignacio de Loyola e Castro
Conselheiro Jorge Cesar de Figanière
Os Vogaes Lazaro Lima
Louis Gruder
Visconde de Castilho

Requerimento SPA abolicao touradas
Requerimento SPA abolicao touradas

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