Igreja Católica: A condenação das touradas

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Sérgio Caetano

Muito se tem dito e escrito acerca da posição da Igreja Católica em relação às touradas. Certo é que, na sua longa história, a igreja nunca assumiu uma posição de defesa das práticas tauromáquicas, muito pelo contrário, todas as posições assumidas pelo Vaticano foram no sentido de condenar as corridas de touros, posição que nem sempre foi respeitada. Alguns clérigos chegaram mesmo a adulterar os textos para que as touradas não fossem erradicadas da Península Ibérica.

Nas últimas décadas, porém, assiste-se a um progressivo afastamento da Igreja Católica da prática tauromáquica, com exceção para as Misericórdias portuguesas que continuam a manter uma ligação forte com as touradas, contrariando esta tendência e os valores que defendem.

A Igreja proibiu as lutas de touros em 1567 horrorizada com a crueldade dos espetáculos taurinos então praticados.

Historicamente as Igrejas locais estão associadas ao início da atividade tauromáquica não só promovendo eventos, mas também com um papel importante na criação de bovinos que depois eram usados nestes festejos. Durante muitos anos, tauromaquia e a Igreja surgiam lado a lado num ritual de perigo e morte onde a superstição ocupava lugar privilegiado. Nos dias de hoje é conhecida a devoção dos lidadores e a sua busca de proteção divina para os perigos na arena, mas a Igreja afastou-se lentamente do sangue e da crueldade das touradas.

Segundo alguns autores, o primeiro espetáculo relacionado com lutas com touros de que há registo terá ocorrido no período de formação dos reinos cristãos em Espanha no ano de 815 em León [ref] ainda sob domínio árabe mas organizados pelos cristãos. Já nos séculos XI e XII há registos em Espanha de cerimónias religiosas em que também se realizaram este género de festejos com touros. Em 1080 na boda do Infante Sancho de Estrada em Ávila, em 1107 para celebrar a boda de Blasco Muñoz em Logroño e mais tarde em 1140 novamente em León para celebração do casamento da filha de Afonso VII.

Estes eventos eram, no entanto, muito diferentes das touradas de hoje, e os animais eram mortos rapidamente, sem uma lide tão artística e prolongada. Este tipo de combate ocorria não só na Península Ibérica mas um pouco por toda a Europa.

No século XV ganha expressão em Espanha o combate de touros a cavalo e o papel da igreja local na promoção de festejos taurinos: “Os próprios átrios das Igrejas são, não poucas vezes, teatro de ações tauromáquicas, oferecendo improvisadas liças onde ocorriam as mais brilhantes facetas dos programas dos seus festejos em honra dos santos mais queridos ou populares.”[ref].

O padroeiro dos toureiros.

S. Pedro Regalado.
São Pedro Regalado.

Curiosa é a história do franciscano São Pedro Regalado (1390-1456) que um dia se cruzou com um touro que tinha fugido da praça de touros de Valhadolide. Pedro não se amedrontou com o desesperado animal, tratando-o por amigo e pedindo que se ajoelhasse à sua frente. Depois retirou-lhe todas as bandarilhas que tinha espetadas no corpo “(…) Regalado com sossego e tranquilidade ia-lhe arrancando, uma a uma, as pontas dos ferros com que haviam atormentado o animal. No final, depois de o ter inundado à medida da sua compaixão, deu-lhe a benção e mandou que se fosse curar nas águas do rio Douro”[ref]. Regalado salvou o animal da bestialidade humana, mas ironicamente seria aclamado mais tarde Padroeiro dos Toureiros, título que ainda hoje é utilizado pelos lidadores…

É nesta altura que o divertimento chega também a Roma durante o papado de Alexandre VI, mas a sua prática em Itália iria durar pouco tempo.

Isabel, a Católica
Isabel, a Católica.

Quando subiu ao trono de Castela a rainha “Isabel, a Católica” (1474 – 1504) as lutas sangrentas entre homens e touros sofreram um duro revés. Isabel, considerada um das mulheres mais inteligentes daquela época, mostrou grande desprezo pelo espetáculo tauromáquico e depois de assistir ao vivo à morte de dois lidadores ordenou que os touros passassem a ser embolados, com as hastes cortadas, para evitar o derramamento de sangue humano nas arenas.

Apesar de estar localmente ligada ao desenvolvimento destas festejos, a igreja católica foi também o primeiro grande opositor da prática destes divertimentos, e existem várias referências históricas que confirmam este facto. Muitos membros da igreja católica repudiaram a realização, promoção e assistência a este tipo de divertimentos que consideravam contrários à bondade e fé cristã.

Clérigos contra as lutas com touros.

Frades em tourada

Na vizinha Espanha, S. Juan de Ávila (1500-1569), sacerdote e escritor andaluz foi um dos opositores das lutas com touros que por ali se realizavam: “Correr touros é coisa perigosa para a consciência de quem manda ou autoriza a sua celebração!”[ref].

Alguns anos mais tarde em Portugal o padre Manuel Bernardes (1644-1710) escreveu sobre as loucuras e crueldades cometidas nas corridas de touros: “O jogo de feras foi introdução do demónio, como todas as mais do gentilismo, para que o coração humano perdesse o horror à morte e derramamento de sangue humano, e aprendesse a fereza de costumes e indómito das paixões. Em Espanha ainda sabe a gentilismo o jogo dos touros, porque, por mais que o deem por seguro e inocente, o certo é que quem gosta, ou de assistir, ou de se expor a tal perigo, não lhe falta muito para bárbaro, ou para ímpio. Em uma festa de touros em Cuenca, refere Marianna que houve um tão feroz, que em uma tarde matou sete toureiros (…).

O padre acrescentou que “em vez de desterrarem semelhante folguedo, mandaram fazer um painel por um pintor célebre, onde se via o touro com os sete mortos a seus pés, e o puseram para memória do caso em lugar público. O que a mim, diz com muita razão o sobredito autor, me parece que foi levantarem os cidadãos um padrão e letreiro da sua loucura! Vejam se tem razão Cassiodoro, de chamar a este exercício jogo cruel, deleite sanguinolento e fereza humana (…)” [ref].

Em Portugal continuaram a surgir esporadicamente referências a festejos com touros. A igreja tinha nesta atividade um papel importante já que estava intimamente ligada à criação de gado fornecendo os animais para as diversões*. Terá sido também a igreja a primeira entidade a tirar rendimentos do espetáculo. Em 1555 os irmãos da Confraria de Nossa Senhora da Merciana davam parte ao rei (D. João III, O Piedoso) “fazerem a festa e touros como era de costume, com muita quietação conforme o regimento que a rainha dera à mesma confraria, pedindo ao mesmo senhor os conservasse na posse em que estavam.[ref].

* Ainda hoje algumas Misericórdias se dedicam à produção animal.

A oposição do Vaticano à violência das lutas.

A igreja e as touradas

Apesar da ligação da igreja a estas atividades, o Vaticano nunca viu com bons olhos a participação dos clérigos neste tipo de divertimento e, aliás, nunca aprovou a sua realização. Na idade média o Vaticano por diversas vezes criticou os monarcas portugueses por obrigarem os clérigos a participar nas guerras.

Os Concílios da altura proibiam inclusive os bispos de caçar, mas há registos que provam que os bispos portugueses se dedicavam a estas atividades. “Assim como havia bispos que se entregavam ao exercício da caça, e para isso mantinham falcões e açores contra a disposição dos concílios, assim também os havia, é bem sabido, que não faltavam aos combates como verdadeiros soldados, não já somente contra os infiéis, mas ainda contra os próprios correligionários” [ref].

O grande número de vítimas mortais em consequência das lutas com touros motivou a publicação pelo mais alto representante da igreja católica de uma Bula que excomungava os espectadores das corridas de touros e os proibia de serem sepultados em solo sagrado. Este documento tem sido alvo de muita desinformação ao longo dos anos, tal como muitos dos factos que envolvem a história do espetáculo tauromáquico.

Não há dúvidas que este texto condenatório das touradas não caiu nada bem junto dos mais aficionados que o tentaram esconder e por força da pressão junto do Vaticano, de alguma forma, atenuar ou adulterar o seu conteúdo. Luis Gilpérez Fraile publicou em 2001 um livro intitulado “De interés para católicos taurinos” resultado de um estudo profundo desta questão onde é feita uma análise de vários documentos publicados após a Bula de Pio V, traduzidos pelo padre Sebastián Goñi do Tribunal Eclisiástico de San Sebastian. É baseado neste trabalho e em várias publicações que abordam este tema, incluindo alguns documentos publicados em Portugal, que redigimos esta análise cronológica da proibição das touradas por parte do Vaticano.

No dia 1 de novembro de 1567 o Papa Pio V, horrorizado pela crueldade dos espetáculos taurinos procurou pôr fim a estes festejos ao publicar a Bula “Salute Gregis Dominici” proibindo determinantemente as corridas de touros e decretando pena de excomunhão imediata a qualquer católico que as permitisse ou participasse nelas. Ordenou igualmente que não fosse dada sepultura eclesiástica aos católicos que pudessem morrer vítimas de qualquer espetáculo taurino.

“Nós portanto considerando que esses espetáculos de se correrem touros e outras feras em corro ou praça, são alheios da piedade e caridade cristã. E querendo desterrar esses jogos sanguinolentos e ímpios, mais de demónios do que de homens, e providenciar, quanto com ajuda de Deus podemos, à salvação das almas, a todos os príncipes cristãos, e a cada um em particular, dos constituídos em qualquer dignidade tanto eclesiástica como temporal, ou imperial, ou real, ou de qualquer outra sorte, e seja qual for o cargo que exerçam; ou a quaisquer comunidades e repúblicas, proibimos e vedamos por esta nossa Constituição, válida para sempre, e sob as penas de excomunhão e anátema, em que hão-de incorrer se a isto contravierem, que em suas províncias, cidades, senhorios, vilas e lugares, permitam espetáculos, deste género, em que se corram toiros e outros animais… Aos clérigos não menos, tanto regulares como seculares, e a todos os providos, proibimos, sob pena de excomunhão, que entrem em tais espetáculos. E cessamos todas as obrigações de juramento e votos contraídas seja por quem for, ou que de futuro hajam contrair-se perante qualquer universidade ou congregação, de entrarem nesses jogos touros ainda que (segundo a opinião falsa dessas pessoas) seja para honrar os Santos, ou qualquer solenidade ou festividade eclesiástica. Porque os Santos e a Igreja, só com louvores divinos, gozos espirituais, e obras pias se devem celebrar, e não por aquela forma…”.

Bula Papal “Salute Gregis Dominici

Esta Bula levou ao desaparecimento da tradição de correr touros em Itália onde também haviam registos sangrentos de grandes tragédias associadas ao divertimento taurino. Em Roma no ano de 1332 faleceram de uma só vez 19 cavaleiros e muitos plebeus colhidos pelas hastes dos touros[ref].

O autor A. Martín Maqueda atribui à falta de conhecimento e preparação dos romanos os banhos de sangue que, na sua opinião, foram os responsáveis pela abolição do espetáculo em Itália[ref]. Também em França as lutas com touros deixaram praticamente de se realizar por esta altura à exceção de algumas localidades do sul do país onde a influência espanhola mais se fazia sentir.

Filipe II enganou o Papa.

Mas na Península Ibérica a vontade do Papa de terminar com estes violentos espetáculos sempre foi ignorada, escondida e desrespeitada com o falso argumento que a lide de touros era fundamental para o treinos das tropas cristãs. A mentira invocada pelos monarcas procurava esconder o fanatismo pelas lutas sangrentas contestadas pelo Papa. Monarcas, fidalgos e mesmo membros do clero tentaram ocultar as determinações do Papa, ignorando-as ou adulterando o seu conteúdo.

Alguns autores tauromáquicos admitem mesmo que Filipe II enganou e mentiu ao Papa invocando estes falsos argumentos para convencer Pio V, nomeadamente a sua utilidade no treino para a guerra santa: “É fácil perceber que o filho de Carlos V não foi sincero na apresentação de tal argumento, numa altura em que os progressos da ciência da guerra já não justificavam tal preocupação, e o exercício militar, desempenhado na sua maior parte pelo povo que não praticava toureio, possuía meios de preparação em que muito pouca influência poderia ter a lide de toiros, com a feição artística e independente que vinha demonstrando. Mas Filipe II não teria encontrado melhores razões para convencer o Papa.” [ref].

Filipe II, fanático religioso, aliou-se aos lidadores, proibiu a publicação da Bula e encetou uma luta com Roma que iria perdurar por muitos anos. O empenho de Filipe II na defesa dos festejos taurinos não se baseava na sua afición, porque não era particularmente adepto da tauromaquia, mas pelo facto de mesmo proibidas, as lutas com touros serem muito concorridas na altura, acudindo a elas um número considerável de cidadãos, entre os quais alguns membros do clero que se disfarçavam com trajes civis para assistir aos festejos ignorando o risco de excomunhão.

O monarca temia pela sua popularidade ao adotar uma medida que não seria bem aceite em setores bastante influentes na corte [ref]. Contudo a Bula seria traduzida para português e publicada em Carta Pastoral do Bispo de Coimbra D. João Soares, documento que se encontra ainda hoje conservado nos Arquivos da Biblioteca Nacional de Portugal [ref].

Bula proibindo as lutas com touros
Bula Papal que proíbe que se “corram touros e outras bestas feras” em Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).

Em 1575 o sucessor de Pio V, Gregorio XIII por pressão de Filipe II de Espanha publica a Encíclica “Exponi nobis” levantando aos laicos a proibição de assistência às corridas de touros desde que se tomassem as correspondentes medidas a fim de evitar qualquer morte e que tais eventos não se realizassem aos domingos e dias santos, procurando evitar que as touradas fossem promovidas como entretenimento.

Gregorio XIII manteve no entanto a proibição aos clérigos de assistir e participar nos combates com touros. Ainda assim alguns membros do clero continuavam a disfarçar-se com trajes civis para assistir aos festejos. “Num período de forte atuação da Inquisição, a classe eclisiástica era a primeira a dar maus exemplos…” [ref], refere Maria Teresa Resende no livro “No tempo das touradas” a propósito deste interessante episódio.

A obsessão de alguns clérigos espanhóis pelas corridas aos touros era tão grande, que chegam a tomar posições rebeldes e segundo Luis Gilpérez Fraile, os que lecionavam na Universidade de Salamanca não só assistiam e promoviam corridas aos touros, como manipulavam a encíclica Papal para que os alunos acreditassem que a exceção concedida pelo Papa também os incluía a eles. Os clérigos de Salamanca iniciaram uma luta com o Vaticano que se prolongou por alguns anos.

Os portugueses também ignoraram a proibição.

Em 1578, e antes de partir para a batalha de Alcácer-Quibir, D. Sebastião terá participado numa corrida de touros em Xabregas pondo em prática a sua destreza no manejo das armas matando um touro da forma que é descrita por Jaime Duarte de Almeida: “Aguentando o embate sem mais defesa do que a sua pequena capa que mal enrolara no braço esquerdo, fez desaparecer toda a lâmina da espada no cachaço do toiro, que se entregou vencido, como fulminado por aquele golpe, entre as aclamações que coroavam o feito, naquela gritaria febril com que a emoção cede o seu lugar ao entusiasmo.” [ref].

Os “treinos” realizados em Xabregas e em Cádiz (onde também terá toureado a caminho de África) pelo monarca português de nada lhe valeram na batalha de Alcácer-Quibir (1578) onde viria a padecer. Bem pode dizer-se que D. Sebastião foi castigado pelas determinações de Pio V que excomungavam todos os monarcas e clérigos que participassem em corridas de touros não lhe sendo concedida sepultura em solo sagrado.

Nos dois anos que se seguiram desapareceu a afición em Portugal com a governação do Cardeal D. Henrique que fez respeitar a vontade do Vaticano dando cumprimento à vontade do Papa. As touradas desapareceram em Portugal.

Só em 1582 Filipe II de Espanha, na altura também rei de Portugal (Filipe I), dá a conhecer as ordens do Papa Gregório XIII, ignorando contudo a proibição dos clérigos. O monarca autoriza a realização de corridas de touros em Lisboa, exceto aos domingos e dias santos e desde que delas não resulte a morte de alguma pessoa[ref].

… a barbárie humana está ainda entranhada nas corridas de touros, não há dúvidas de que a igreja continua a condenar, tal como o fez no passado, estes espetáculos sangrentos e vergonhosos.

O sucessor de Gregório XIII, Sixto V (Papa de 1585 a 1590) ao ter conhecimento das desobediências contacta o bispo de Salamanca (Breve “Nuper siquidem”) ordenando que se proíbam os clérigos de assistirem aos espetáculos taurinos e que castigue os desobedientes.

A carta do Papa foi tornada pública pelo Bispo de Salamanca através de uma ampla e dura Carta Pastoral onde ordena que “doravante, não se ouse dizer, nem ensinar, nem aconselhar, que as ditas pessoas eclisiásticas podem assistir aos ditos espetáculos sem incorrer em pecado…”[ref]. Inconformados, os Clérigos da Universidade de Salamanca recorreram ao Rei pedindo que o monarca solicitasse a revogação das determinações do Papa, mas Filipe II não o chegaria a fazer nessa altura.

Mais tarde, já com o Papa Clemente VIII (1592 – 1605), os clérigos tauromáquicos de Salamanca contrataram dois procuradores para negociarem no Vaticano o assunto com o Papa, que com o pretexto de que a bula do antecessor Pio V não tinha conseguido eliminar os combates com touros, “tão importantes para tornar mais valentes os cavaleiros para as tarefas da guerra”, toma em janeiro de 1596 uma nova resolução mais suave, permitindo aos clérigos seculares participar nas corridas de forma discreta e mantendo a proibição aos clérigos regulares.

Aconselhou ainda aos outros eclesiásticos que por uma questão de dignidade se abstivessem por completo de assistir a tais espetáculos, suprimindo as penas de excomunhão anteriormente efetuadas, só nos reinos de Espanha e com exceção dos monges, frades e regulares de qualquer ordem religiosa mantendo também as anteriores condições: “queremos que as corridas de touros, nos reinos de Espanha, não se celebrem em dias festivos” e que “se tomem medidas para que, dentro do possível, delas não resulte a morte de qualquer pessoa.” [ref].

O fanatismo gerado pelo prazer de combater touros publicamente, era de tal forma que levou a que as determinações do Vaticano fossem novamente ignoradas e deturpadas ao longo de anos. Em “História da Tauromaquia” de 1951, Jaime Duarte de Almeida afirma que Clemente VIII “corajosamente anulou, de maneira absoluta, a bula de Pio V” [ref] o que não corresponde totalmente à verdade.

O historiador eclesiástico monseñor Manuel Rodríguez (1629-1701), referiu mais tarde que “pecam mortalmente os religiosos que disfarçadamente se atrevem a assistir às corridas de touros interpretando falsamente a Bula de Clemente VIII, pois a proibição jamais foi revogada, e assim o têm declarado as supremas autoridades eclesiásticas.” [ref].

Quanto seria do agrado de Deus proibir a festa de touros.

De interesse para católicos taurinos

Segundo a investigação de Luis Gilpérez Fraile, traduzida no livro “De interés para católicos taurinos”, só 84 anos mais tarde a Igreja voltaria a pronunciar-se sobre o assunto das touradas e mais uma vez condenando fortemente este espetáculo.

Em julho de 1680 o secretário do Papa Inocêncio XI (1676 – 1689), Alderano Cibo, remeteu o Decreto Apostólico “Non sine graui” ao representante diplomático do Papa em Espanha, Savo Mellini. O documento foi acompanhado de uma nota pessoal do Papa dirigida ao rei Carlos II de Espanha e chegou às mãos do monarca a 25 de setembro desse ano. No Decreto Inocêncio XI lembrava que os “nossos antecessores, os Pontífices Romanos, sempre condenaram este tipo de festas” e lamentou a desobediência dos eclesiásticos regulares às ordens de Clemente VIII de que não participassem nem assistissem às corridas de touros “tão pouco em consonância com a moral cristã”, e encarrega Savo Mellini de fazer cumprir as determinações do Vaticano e a atuar seriamente perante o rei católico e seus colaboradores para que no futuro, a acontecer estas corridas, se tomem pelo menos medidas que salvaguardem as vidas humanas.

Na nota pessoal que enviou a Carlos II, o Papa referia: “Quanto seria do agrado de Deus proibir a festa de touros…”. Carlos II ignorou completamente estas súplicas do Papa bem como o Decreto não dando qualquer resposta. Mellini, o representante diplomático do Papa, enviou uma carta ao Marquês de Velada para que insistisse com Carlos II sobre este assunto sugerindo inclusive que o melhor seria fazer as corridas de touros desaparecer de uma vez já que fazem parte dos espetáculos sangrentos do paganismo. Velada fez chegar o documento ao rei junto com uma cópia do Decreto mas não há registo de nenhuma resposta por parte do monarca, que segundo Luis Gilpérez Fraile, não queria criar polémicas com a nobreza.

A proibição das touradas por parte da Igreja Católica era até aqui baseada essencialmente na condenação da perda de vidas humanas que tais espetáculos implicavam, tal como acontece nos dias de hoje.

O Vaticano e a proteção aos animais.

No entanto, no início do século XX, a igreja vê-se confrontada com apelos à defesa e proteção dos direitos dos animais, nomeadamente os touros e cavalos utilizados nas arenas, por parte de associações que então começam a desenvolver o seu trabalho nesta área.

Em 1920 a Presidente da Sociedade Protetora dos Animais de Toulon (França) envia uma carta dirigida ao Papa Benedicto XV (Papado de 1914 a 1922) solicitando esclarecimentos sobre a sua posição em relação às corridas de touros. A resposta surgiria no dia 23 de outubro desse mesmo ano pelo Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Pietro Gasparri com considerações bastante duras para com o espetáculo tauromáquico. “… a barbárie humana está ainda entranhada nas corridas de touros, não há dúvidas de que a igreja continua a condenar, tal como o fez no passado, estes espetáculos sangrentos e vergonhosos.” E prossegue “(Sua Santidade) incentiva todas as nobres almas que trabalham para acabar com esta vergonha e aprova de todo o coração todas as ações estabelecidas com esse objetivo e que se esforçam por desenvolver nos nossos países civilizados, o sentimento da piedade para com os animais” [ref].

A carta foi tornada pública no Jornal oficial do Vaticano “Osservatore Romano” a 6 de maio de 1923 por altura da celebração de uma corrida de touros em Roma numa tentativa fracassada de reintroduzir as touradas em Itália. O documento refere-se ainda à ação da Sociedade Protetora dos Animais de Toulon, que teve um grande impacto na época e motivou algumas demonstrações de solidariedade de alguns clérigos, como o Arcebispo de Paris, Cardeal Dubois, que se dirigiu assim àquela associação: “Pode essa Sociedade estar orgulhosa da bela carta com que a honrou Sua Eminência o Cardeal Gasparri em nome do Soberano Pontífice. (…) Não pode haver dúvida de que os católicos devem abster-se de assistir a esses espetáculos, que são eminentemente cruéis.”.

A igreja francesa, apesar de não ter conseguido fazer cumprir a Bula de Pio V, também se manifestava em 1885, através do Bispo de Nimes (cidade que ainda hoje é um grande centro de afición) numa passagem datada de 15 de agosto em que, depois de se referir à dita Bula, Monsenhor Besson proíbe os jornais católicos de publicitar as corridas de touros: “(…) só devem ocupar-se delas para as condenar com energia”.

Também no México a Bula de Pio V não passou indiferente à igreja local. No Concílio Mexicano Provincial celebrado em 1585 e aprovado em Roma pelo Papa Sixto V em 1589, as polémicas corridas de touros foram abordadas, e mais tarde, no século XIX, o Padre mexicano José Ximeno fez questão de lembrar os fiéis da absoluta oposição da igreja a este tipo de entretenimentos: “A Igreja sempre detestou as corridas de touros, como consta nas Bulas de Pio V, Gregório XIII, Clemente VII, não só porque têm a sua origem na crueldade das gentes, como devido aos escândalos, mortes y desgraças, que nelas costumam acontecer.”[ref].

No entanto a Excomunhão da Igreja Mexicana, lembra o Padre, não se estendia aos que assistem mas apenas aos que dão ordem e consentem que as touradas se realizem principalmente em cemitérios e campos santos como era vulgar acontecer: “Quando se incorre nesta primeira Excomunhão Sinodal? Incorre-se pelos que dão ordem, ou pelos que devendo impedi-lo, não o fazem, mas sim que o consentem, que com grave irreverência dos Cemitérios, ou Campos Santos, se façam nelas quaisquer corridas de touros, mas não de novilhos, vacas, ou um só touro à corda.” [ref].

A oposição do Vaticano à participação do clero nas festas com touros voltou a manifestar-se em Portugal com a proibição de “touradas, cavalhadas, representações teatrais ou contradanças[ref] durante as celebrações do casamento do infante D. João, futuro D. João VI, expressa em cartas pastorais de 1785 e 1786, transcritas no ano de 1820 no Jornal de Coimbra, seguindo as anteriores indicações do Vaticano, isto apesar de ao mesmo tempo algumas instituições ligadas à igreja começarem a tirar algum rendimento das corridas algo que se viria a intensificar a partir daqui, nomeadamente as Misericórdias.

Em 8 de fevereiro de 1854, quando as touradas só eram autorizadas esporadicamente e desde que os lucros revertessem para obras de caridade, o Padre transmontano José Jacinto Tavares apresentou à Câmara dos Deputados um novo projeto de lei para a abolição das touradas: “Senhores: Ainda no século presente, século de luzes e de progressiva civilização, aparecem, infelizmente restos de usos bárbaros dos séculos passados. Algumas nações há na culta Europa, nas quais eles ainda não foram arrancados! Mas nenhum tão grosseiro, tão estúpido e tão bárbaro como entre eles as célebres corridas de touros. É de tanta evidência esta asserção, que o demonstra-la fora uma completa ociosidade; e por isso estou persuadido que nenhum de vós, senhores, se há de levantar nesta Câmara para o combater, porque todos sois varões esclarecidos e dotados dos mais puros sentimentos de nobreza e humanidade. Sim, estou deveras convencido que nenhum de vós, será capaz de proferir o mau gosto de sustentar a continuação de tão abominável uso, à glória de o cortar pela raíz, como um dos que muito tem concorrido para o desdouro da nação portuguesa, e para que ela não apareça desassombrada entre as nações mais cultas do mundo.
De acordo pois com um dos nossos ilustres escritores contemporâneos e, servindo-me até quasi das suas próprias expressões, peço-vos senhores, em nome do progresso, que abrandou nossos hábitos, da carta, cujo espírito suprime os escusados padecimentos corporais, da lei que apagou em nossos códigos as manchas de sangue, que façais aparecer de novo uma lei de bronze, que declarando o divertimento dos touros de impolítico, imoral e absurdo, o extermine de entre nós para sempre.” [ref]. O projeto não chegou a ser discutido.

O Estado Novo.

Touros de morte
Folheto de um grupo de católicos portugueses contra as touradas de morte durante o Estado Novo.

Com a ditadura a Igreja voltou a conseguir um lugar privilegiado junto do regime que promoveu a “tourada à portuguesa” instituindo as regras no regulamento tauromáquico de 1953 que fundou a tourada com cavaleiros e forcados.

Em 1933 um grupo de católicos de Lisboa, liderados por Francisco Melo, emitia um panfleto [ref] de contestação aos touros de morte, “Um grupo de católicos do Patriarcado de Lisboa deliberou divulgar este artigo admirável, que demonstra que todos os que constituem a Igreja Católica devem não apenas abster-se de assistir ou auxiliar o espetáculo embrutecedor das corridas de touros, mas também combate-lo, animados pelo aplauso do grande Pontífice Pio XI, que, como os seus Antecessores, recomenda que todos trabalhem a fim de eliminar tal mancha. Que todos os católicos, ouvindo o apelo do Papa imortal da ‘Quadragéssimo Ano’ encetem luta tenaz contra essa selvajaria, imprópria da nossa época e da nossa civilização”.

Francisco Melo invocou o artigo publicado na edição de maio de 1923 no “Osservatore Romano”, o jornal oficial do Vaticano, onde a igreja condenava, uma vez mais, as touradas “o espetáculo em que pobres animais são martirizados e por fim mortos, para prazer de indivíduos que a ele assistem, é contrário à civilização e à bondade cristã, que se estende até aos animais.”

Praças de touros das Misericórdias
Praças de touros propriedade das Misericórdias em Portugal.

O afastamento da Igreja Católica em Portugal é notório nas últimas décadas. A título de exemplo refira-se que o Regulamento do Espetáculo Tauromáquico aprovado em 1971 obrigava à existência de uma capela em todas as praças de touros – “Em todas as praças deve existir, em local condigno, uma capela ou simples oratório destinado exclusivamente aos lidadores.” bem como de um sacerdote “As empresas devem assegurar, durante a realização do espetáculo, a presença de um sacerdote para prestar assistência espiritual a qualquer lidador ou espectador afetado de doença súbita, quando solicitada.”

 Atualmente, apesar de se manterem as capelas em muitas das praças de touros portuguesas, essa obrigação foi retirada do Regulamento bem como a presença do sacerdote nas touradas.

A influência política das Misericórdias.

Contrariando a posição do Vaticano, as Misericórdias portuguesas têm mantido uma relação próxima com a atividade tauromáquica, assumindo até um papel preponderante na promoção das touradas.

Por razões históricas já contextualizadas neste artigo, as Misericórdias são proprietárias de uma grande parte das praças de touros existentes em Portugal Continental.

Para a história fica ainda a enorme pressão exercida por algumas Misericórdias sobre o poder político em 1837, ao lado da Casa Pia, no sentido deste retroceder na decisão da abolição das touradas em Portugal, decretada como se sabe a 19 de setembro do ano anterior, pelas receitas que beneficiavam estas instituições beneméritas.

A pressão foi bem sucedida e a abolição revertida, passando a permanecer em observância o Decreto de setembro de 1821 que determinava que as touradas realizadas na cidade de Lisboa revertiam financeiramente para a Casa Pia e as restantes, realizadas noutros pontos do país, para as Misericórdias conforme ficou expresso no Diário do Governo na Carta de Lei de 21 de agosto de 1887:

Artigo 1º – As corridas de touros que tiverem lugar em Lisboa, e que não forem gratuitas, somente poderão ser dadas pela Casa Pia da mesma cidade.

Artigo 2º – Em qualquer outra terra do Reino onde o referido espetáculo produzir rendimento liquido, será este aplicado em benefício das Misericórdias, ou de qualquer outro estabelecimento Pio do respetivo concelho.”

Corrida de touros em Santarém da União das Misericórdias.

A relação entre as Misericórdias e a tauromaquia tem hoje um carácter meramente económico e patrimonial mas com um peso naturalmente muito menor no seu orçamento, visto que as touradas deixaram de ser a principal fonte de receita destas instituições que movimentam milhões de euros.

Apesar disso, continua a ser promovida anualmente a “Corrida de Toiros da União das Misericórdias Portuguesas”, ao contrário do que aconteceu, por exemplo, com a Rádio Renascença que decidiu abdicar de realizar este tipo de evento.

Em 2018 a União das Misericórdias foi mais longe e assinou um protocolo de adesão à Federação Prótoiro. O protocolo foi assinado pelo Presidente do Secretariado Nacional da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, que exerce o cargo desde 2007.

Segundo informação difundida publicamente, o objetivo deste protocolo é “dinamizar as cerca de três dezenas e meia de praças de touros que se encontram nas mãos das Misericórdias“, no entanto desconhecem-se mais pormenores sobre o protocolo ou sobre a forma como ele será dinamizado.

Esta união das Misericórdias com a violência e crueldade das touradas contraria os valores e os princípios de caridade e humanismo destas instituições de base cristã.

Conclusão.

É evidente que a violência da tauromaquia choca com os valores que norteiam a religião cristã, pelo que é natural o progressivo afastamento da instituição a um “divertimento” cada vez mais contestado na sociedade.

Em Portugal, apesar da oposição do Vaticano, mantem-se uma ligação forte da igreja católica à promoção de eventos tauromáquicos, principalmente nos municípios onde esta tradição está mais enraizada.

Em alguns casos, os festejos religiosos ainda se misturam com o ritual tauromáquico. Em alguns municípios as touradas ainda são precedidas de uma procissão à luz das velas, em volta da arena da praça de touros, em que os forcados e toureiros transportam os andores dos santos, com o padre a encabeçar o cortejo.

Apesar da igreja católica procurar evitar esta polémica, nos últimos anos o Papa Francisco tem manifestado uma clara empatia pela proteção e bem estar animal. A encíclica “Laudato Si”, do Papa Francisco, condena claramente os maus tratos a animais, considerando que “é contrário à dignidade humana fazer sofrer inutilmente os animais e dispor indiscriminadamente das suas vidas”.

Este pronunciamento tem sido ignorado pelas Misericórdias portuguesas que não se inibem de assumir publicamente o seu apoio às práticas tauromáquicas, promovendo desta forma, a crueldade e a violência contra os animais por mera diversão.

Bibliografia:

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  14. Almeida, Jaime Duarte de. “História da Tauromaquia”. Lisboa: Artis, 1951.
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  16. Fraile, Luís Gilpérez. “De interés para católicos taurinos”. Sevilha: Edita Risko, 2001.
  17. Idem.
  18. Almeida, Jaime Duarte de. “História da Tauromaquia”. Lisboa: Artis, 1951.
  19. Citado por Celsius em “La Iglesia católica y las fiestas de toros” [S.l. : s.n., 19–?]
  20. Fraile, Luís Gilpérez. “De interés para católicos taurinos”. Sevilha: Edita Risko, 2001.
  21. Ximeno, P. José. “Ópusculo sobre los catorce casos reservados y otras tantas excomuniones sinodales”. México: Don Alexandro Valdês, 1816.
  22. Idem.
  23. Monteiro, Ofélia Milheiro Caldas Paiva. “D. Frei Alexandre da Sagrada Família: a sua espiritualidade e a sua poética”. Coimbra: UC Biblioteca Geral 1, 1974.
  24. “Touros de morte – a condenação pela igreja católica. Tradução do notável artigo publicado em 6 de Maio de 1923 no Osservatore Romano…”, Lisboa: Oficinas Gráficas, 1933
  25. Actas da Câmara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza, Sessão de 8 de Fevereiro de 1854. nº 6, Pág. 55

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Tauromaquia e solidariedade: Um mundo à parte

O lado solidário da ‘festa brava’ tem na sua origem uma solução estratégica para salvar as touradas da extinção.