Ferreira de Castro: A morte do touro

Ferreira de Castro
Ferreira de Castro

Texto: Ferreira de Castro 
Publicado em: A Batalha Suplemento Semanal Ilustrado nº 29
Data: 16 de junho de 1924

A morte do touro

Eu amo a galhardia mas odeio a barbaridade. Eu amo os gestos audaciosos, arrojados, mas detesto-os profundamente sempre que eles se traduzem em crueldade.

E por isso eu desprezo os heróis, aqueles sobre cuja bravura se tece uma sinistra auréola de sangue.

E por isso eu me tinha negado desde o início a dar a minha presença àquele número das festas com que Sevilha recebeu os jornalistas portugueses – e que era uma tourada.

Da capital da Andaluzia os jardins maravilhosos, prenhes de perfumes intensos, de lagos adormecidos, de rosas, de gerânios e de cravos, desabrochando em orgias de cor, interessavam mais à minha alma do que o espectáculo bárbaro do homem a defrontar-se com o touro, naquela tarde quente, mórbida e sensual de Junho.

Meus companheiros, porém, insistiam, argumentavam – faziam agigantar a meus olhos a tradicional beleza pagã que reside nas touradas.

É uma luta de ciladas, de traições, órfã de beleza, viuva de assombro.

Por último o notável escritor sevilhano Muñoz San Roman, embora inimigo do espectáculo bárbaro, aconselhava-me a que assistisse a ele, para assim fazer uma ideia mais concreta sobre touro e homem, para assim melhor poder combater o homem e defender o touro…

Muñoz San Roman é uma sensibilidade delicadíssima e suas palavras decidiram-me.

A praça, larga, ampla, enorme, estava cheia duma multidão heterogénea, cujos olhos, descendentes dos de Nero, se fixavam impacientes sobre a arena ainda vazia.

Um sol inclemente, impiedoso adusto, derramava sobre as arquibancadas da direita a sua cornucópia de luz, e milhares de mãos agitando os clássicos abanicos davam a sensação de asas encarceradas, debatendo-se nervosamente por detrás das grades duma gaiola incomensurável.

Próximo de mim, nos camarotes engalanados, grupos de mulheres formosas, perturbantes, palestravam com amenidade, espraiavam seus olhos negros, profundos e misteriosos desde a trincheira até às últimas arquibancadas e irradiavam em seu redor ondas quentes de sensualidade.

Toda aquela multidão fremia ocultamente e sobre a praça pairava uma densa expectativa, uma comoção e uma curiosidade ilimitadas.

E, pouco a pouco estabelecia-se um silêncio colectivo; aqueles milhares de lábios cerravam-se numa espera voluptuosa, trágica, de tigre aguardando a presa, de fiéis aguardando o ídolo.

Ia reaparecer Juan Belmonte – o soberano, o deus, um dos primeiros actores de toda a Espanha daquele espectáculo primitivo.

E por isso aquela comoção, aquela curiosidade, aquele silêncio – só perturbado por alguns miseráveis apregoando água fresca por entre as arquibancadas.

Por fim Belmonte surgiu… É uma figura pequena, sem imponência, sem trajes sumptuosos a assinalá-lo sobre o cavalo branco em que monta.

Mas a multidão já delira, um frémito de alegria intensa já percorre a multidão.

Eu quedo-me a contemplar o touro negro, altivo, desdenhoso, que agora entra na arena. Seu primeiro gesto é correr para o toureiro célere, mas logo se detém, certo da sua força, certo que inutilizará o inimigo numa luta leal.

Há desdém, há piedade do homem forte para o homem fraco que afronta, naquele touro negro que está parado no centro da praça a olhar Belmonte e o seu cavalo branco. Mas instigam-no.

As capas amarelas e vermelhas surgem na sua frente como estandartes provocadores. E o touro avança então. E a luta estabelece-se. Nada de grandioso, de extra-humano; nada de homem lutando com um tigre, vencendo-o; nada de leão subjugado pelas melenas, sob o poderio de umas mãos hercúleas. É uma luta de ciladas, de traições, órfã de beleza, viúva de assombro.

Eu não sinto mas compreendo a beleza brutal daqueles que lutaram com as feras nos circos romanos, – o que eu não compreendo nem sinto é a proclamada beleza da tourada, com um homem magro, candidato a um sanatório da Suíça, esgueirando-se ao lado do touro sobre um cavalo lesto, fazendo da fuga inteligente a principal arma de defesa…

Todavia a multidão desvaira, crispa-se de entusiasmo e solta das suas mãos, delirantemente, as pombas do aplauso.

O toureiro desce do seu cavalo, toma uma espada e dirige-se ao centro da arena.

Vai matar o toro que está vomitando sangue, rugindo de dor. Cerro as pálpebras e quando o meu olhar converge de novo para a praça, já o animal está tombado, com a espada fundida entre as omoplatas.

O golpe não foi certeiro e é necessário que o indivíduo encarregado de apagar estes fracassos venha, com um pequeno estoque, concluir a morte do touro. Entretanto, Belmonte, romano regressado das conquistas, deus descido do Olimpo, vai colhendo as rosas do triunfo, as palmas quentes, fartas, que miríades de mãos lhe dispensam, prodigamente, entusiasticamente.

A cena repete-se com o segundo touro, – e quando na arena surgem os cavalos, o espectáculo ultrapassa os domínios da barbárie, e toureiros e espectadores dir-se-ão selvagens brotados da própria selva da Antropofagia.

Têm algo de fúnebre, algo de cavalos recém desatrelados dum carro mortuário, esses que são conduzidos pelos indivíduos que os montam ao encontro do touro, – e que levam os ouvidos cerrados e uma faixa negra, lutuosa, a vendar-lhes os olhos.

Eles ignoram o perigo que se acerca, ninguém os procura defender, – a multidão, lá em cima, exige, com requintes de necrófilos, que os seus intestinos se quedem espalhados pela arena, como troféus de asquerosa glória.

E os cornos do touro sevam-se no ventre indefeso desses cavalos, – e destes, como a multidão deseja, as vísceras quedam-se, sangrentas, trágicas, expostas no centro da arena e para elas, com uma oculta cumplicidade, o Sol converge seus raios ardentes.

Sufoco. Um ódio intenso, profundo, enorme, subjuga-me. Orgulhosamente, brutalmente, sinto-me demasiado humano, sinto-me também fera – mas no sentido inverso daqueles que me rodeiam. E parecem-me sinistros, repelentes, os lábios húmidos, grossos e vermelhos duma mulher de rara formusura que está próximo de mim, – lábios de inebriantes voluptuosidades e que agora riem de perversa satisfação, ante a carnificina que lá em baixo se consuma.

Minha revolta aumente, amplia-se, toma proporções estranhas, – e quando Belmonte é colhido pelo touro, quando se enreda nas hastes deste, minha alma, que se comove ante uma simples ferida, foi iluminada por um relâmpago de íntima alegria. Eu tinha suposto que aquele homem já não sairia senão morto de sob a cabeça do touro…

Recordo ainda com horror, com o frio das sensações inconfessáveis, esse desejo monstruoso que brotou, como uma faulha, da minha alma revoltada contra o espectáculo bárbaro.

Mas segundos depois essa faúlha apaga-se, porque já o toureiro se ergue e foge, ligeiro e ileso, do seu inimigo. E então, ante os novos cavalos que já transpunham a trincheira para serem sacrificados, eu levanto-me e protesto e abandono a praça, – abandono aquela multidão desvairada. É a mesma multidão odiosa das arenas de Roma, é a mesma multidão que nas madrugadas das execuções se proscreve dos leitos, para ir contemplar, numa bestialidade repugnante, o corpo dos condenados à morte a contorcer-se no garrote ou na forca, a cabeça dos decapitados dependurando-se sangrenta, clamando vingança, não das mãos delicadas, voluptuosas, da filha de Herodíades, mas sim das mãos imundas, indignas, do carrasco. 
 
Ferreira de Castro 
A Batalha Suplemento Semanal Ilustrado nº 29, 16 de junho de 1924

Notas:
O Jornal “A Batalha” sempre assumiu a sua oposição às touradas em Portugal.
Em 11 de março de 1919, menos de um mês após o início da sua publicação, era afirmado de forma convicta que “touradas só para combatê-las falaremos delas”.
Em 2002, no âmbito da polémica legalização dos touros de morte em Barrancos, o jornal “A Batalha” publicou um suplemento com uma compilação de vários artigos publicados ao longo dos anos no jornal, contra a barbárie das touradas, entre os quais este texto de Ferreira de Castro.
O suplemento pode ser lido aqui