Liberdade nunca rimou com tourada

Artigo de opinião sobre touradas.
Sérgio Caetano

Nos últimos anos “Liberdade” e “touradas” têm andado juntas na boca dos responsáveis pela industria tauromáquica. Depois de esgotado o falso argumento de que “as touradas são o espetáculo com mais público, a seguir ao futebol”, que foi referido vezes sem conta, inclusive por deputados na Assembleia da República apesar de ser completamente falso, a elite das touradas reorganizou-se e criou uma nova imagem, passando a socorrer-se da “liberdade” e da Constituição para exigir o seu direito a preservar uma tradição violenta e que choca com os valores morais da nossa sociedade, não só no que diz respeito à violência, mas acima de tudo, em relação à dignidade e combate aos maus tratos a animais.

O argumento da “liberdade“, como sabemos, pode ser usado para legitimar muita coisa e já foi usado para tentar impedir vários avanços civilizacionais no passado.

O mais curioso é que “liberdade” e “touradas” são duas palavras que nunca combinaram. Desde logo pelo óbvio: porque a liberdade é negada ao principal interveniente na tourada, o touro, muitas horas antes de se dar início ao espetáculo, encurralado num círculo fechado, sem possibilidade de fuga de um destino que é certo: a morte.

Este aspeto não foi ignorado pelos nossos decisores políticos que, com a evolução da legislação que protege os animais da crueldade humana, se viram “obrigados” a criar exceções na lei para permitir que nos nossos tempos, milhares de bovinos possam ser agredidos em público nas tradicionais touradas não esquecendo a crueldade a que são sujeitos os cavalos. Desde este momento que a tourada se viu confinada a um canto escuro à margem da evolução da nossa sociedade.

Touro em sofrimento numa tourada no Campo Pequeno.
Imagem de uma tourada no Campo Pequeno, durante uma demonstração de escolas de toureio com crianças.

A tauromaquia esteve sempre, e continua a estar, muito relacionada com correntes ideológicas conservadoras e com o absolutismo monárquico. A indústria tauromáquica desenvolveu-se dentro de uma classe feudal tradicionalista e marialva, que alcançou benefícios durante o Estado Novo para cimentar as fundações de uma atividade ultrapassada no tempo.

Do ponto de vista político, basta recuar até 1974 para perceber que a liberdade nunca rimou com tourada. O fim da ditadura em Portugal fez ruir a conservadora industria tauromáquica que precisou de alguns anos para se restabelecer e encontrar espaço na democracia portuguesa.

Com a revolução de 1974, a tauromaquia passou mais uma vez do estado de graça para uma situação onde tudo lhe era desfavorável, apesar de se manter a atração pelos touros em algumas regiões do Ribatejo e Alentejo. A tauromaquia, nos primeiros momentos após o 25 de abril, surgiu associada à “reação”, e o argumento da tradição não serviu para justificar a continuação do negócio de exploração de um espetáculo conotado com a fidalguia, o absolutismo monárquico e o Estado Novo.

Tourada em Moçambique com bandeira nazi.
Vista geral do público numa tourada em Moçambique em Setembro de 1937, durante uma exposição agrícola.

Na crónicas taurinas de 1974 encontramos referências claras ao ambiente hostil que a liberdade instalada em Portugal criou no tradicionalista mundillo tauromáquico: “(…) depois do tal dia em que tantas garrafas de espumoso viram saltar a rolha, neste bem aventurado país toda a gente se pôs a armar em progressista, ninguém se confessa das direitas, a custo aparece um ou outro a proclamar-se do centro, a admitir que tem um primo forcado, ou um bisavô que foi marialva latifundiário.” – Touros e reacção: Crónicas taurinas da temporada de 1974. Lisboa: D. L. Petrony, 1975.

A tourada deixou de ter na sociedade portuguesa a visibilidade que conseguiu alcançar durante a ditadura décadas. Alguns toureiros viram-se obrigados a procurar fama nas arenas espanholas e mexicanas, os empresários tauromáquicos deitaram contas à vida, assim como os criadores de touros que com a redução do numero de corridas se viram obrigados a apostar na exportação dos touros para outras paragens. Os dados estatísticos da época indicam que o número de touros de lide exportados quase duplicou em 1974, devido à falta de mercado em Portugal, onde as touradas quase desapareceram.

Touros de lide exportados em Portugal (Sindicato Nacional dos Toureiros Portugueses)
Touros de lide exportados em Portugal (Sindicato Nacional dos Toureiros Portugueses, 1975)

Os grandes latifundiários do Ribatejo e Alentejo, onde se localizam as grandes herdades de criação de touros e cavalos, viram-se igualmente ameaçados pelos camponeses revoltados com a sua situação miserável, e com a ocupação de propriedades, através da Lei da Reforma Agrária.

A este propósito é sugestiva a intervenção do deputados Casimiro dos Santos (PS) na Assembleia Constituinte, em fevereiro de 1976, reagindo às preocupações demonstradas por alguns partidos de direita, pelas ocupações consideradas ilegais e ilegítimas de propriedades agrícolas. “(…) Como não podia deixar de ser, a acompanhar o PPD e o CDS aparece também o PPM, com os seus condes, duques, toureiros e ‘ganaderos’, saudosos das grandes coutadas e das touradas à antiga portuguesa”.

Logo nos primórdios da Revolução as elites do negócio tauromáquico apareciam “encostadas” aos partidos mais à direita, conservadores e monárquicos. A associação da tauromaquia à “reação” ganhou forma logo após a Revolução.

Em 26 de setembro de 1974 uma tourada no Campo Pequeno a favor da Liga dos Combatentes, transformou-se num comício de preparação para a manifestação da chamada “maioria silenciosa” de apoio a António de Spínola, ficando a tourada celebrizada como uma tentativa de “contra-revolução” e de repúdio ao programa do Movimento das Forças Armadas.

“Viva Spínola”, “Viva o Ultramar”, “Viva a GNR” e “Abaixo o MFA” foram algumas palavras de ordem gritadas nos altifalantes da praça de touros do Campo Pequeno. O próprio toureiro José João Zoio exibiu-se na arena com um dos célebres cartazes verdes da “reação” espalhados pelo país convocando os espectadores para a manifestação da “maioria silenciosa”. Dentro da praça de touros, a corrida foi várias vezes interrompida por manifestações de apoio a Spínola enquanto cá fora, à porta da praça de touros, manifestantes gritavam “abaixo a reação” e “o fascismo não passará.

O país vivia um período bastante inquieto de transição para a democracia, com toda a agitação política, a descolonização e as eleições. Os defensores da festa brava tiveram que se organizar e reagir rapidamente à ameaça evidente que o período político representava.

O Sindicato Nacional dos Toureiros Portugueses decidiu criar uma “Secção de Controle e Defesa do Toiro e do Cavalo” através da qual faz publicar a “Síntese do valor Económico e Social da Raça Bovina Brava” onde procurou demonstrar, em 1975, a importância do negócio tauromáquico, não só ao nível económico mas também turístico e de solidariedade pela fonte de receita que representava para instituições como asilos e hospitais, numa tentativa desesperada de não deixar acabar as touradas: “Cuidamos que na pressa justificada de se recuperar tempos e valores perdidos, de se acudir a tudo e a todos, a potencialidade económica que acabamos de denunciar, não fique sem a atenção prioritária que se terá de conceder a quanto, esta Revolução, possa constituir fator importante ou vital de recuperação”.

O Sindicato dos Toureiros, neste autêntico manifesto de propaganda tauromáquica, tentou recuperar a ideia, defendida pelo Estado Novo, que as touradas deviam constituir um cartaz turístico por ser um espetáculo diferente de todos os outros “Sem que queiramos ser apaixonados, pensamos que na confeção da nossa ‘ementa’, a corrida de toiros é, indiscutivelmente, um prato forte; forte e caro, que o estrangeiro paga sem discutir”.

Apesar das contrariedades na agitada temporada de 1974, continuaram a realizar-se corridas de touros no Campo Pequeno e em Cascais, além de outras localidades do Ribatejo e Alentejo como, Coruche, Vila Viçosa, Barrancos e Moura mas sem que alguma vez o espetáculo se tenha tornado um cartaz turístico forte do nosso país.

Aos poucos as touradas foram recuperando o seu lugar na sociedade portuguesa, beneficiando de uma grande impulso com o início da transmissão de touradas na televisão pública nos anos 80.

28Setembro 1974 basta
Cartaz da maioria silenciosa.

O que se passou em 1974 já tinha sucedido antes, durante a implantação da República e a revolução Liberal, períodos em que as touradas foram bastante contestadas e chegaram mesmo a ser abolidas. Com o fim da monarquia e a implantação da República, os toureiros da nobreza afastaram-se das lides nas arenas.

Após 1910 (implantação da República) as touradas estavam fortemente associadas a um Portugal atrasado, conservador e retrógrado, pelo que muitas das praças de touros construídas ficaram ao abandono ou foram demolidas: “Muitas praças de toiros do país caíram em ruínas, outras foram demolidas e só, durante o governo do Presidente do Conselho, Dr. António de Oliveira Salazar, se reconstruíram algumas dessas Praças, entre as quais a de Santarém – a maior de Portugal – graças à iniciativa do ex-Ministro Dr. Rafael Duque, e a de Cascais que hoje constitui um magnífico elemento de motivação turística da Costa do Sol” – Barreto, Mascarenhas. “Corrida: Breve história da tauromaquia em Portugal”. Lisboa: Ag. Port. Revistas, 1970.

A revolução liberal de 1820 foi outro momento de progresso civilizacional da nossa história, de má memória para a indústria tauromáquica, que enfrentou uma grande contestação expressa em diversos artigos escritos por personalidades como Passos Manuel, Borges Carneiro, José Feliciano Castilho, António F. Castilho ou Silva Túlio, e várias propostas com vista à abolição do sangrento “desporto”.

Curiosamente D. Miguel, absolutista, foi o grande impulsionador da atividade tauromáquica em Portugal e responsável pela instalação das ganadarias de criação de gado bravo nos terrenos do “Infantado” no Ribatejo. As touradas chegaram a ser abolidas em 1836, voltando a ser autorizadas alguns meses mais tarde, mas apenas com fins benéficos, numa tentativa de dar alguma dignidade a este tipo de divertimento que se tornou importante no financiamento da atividade da Casa Pia de Lisboa e de algumas Misericórdias.

Invocar a liberdade para procurar legitimar as touradas é negar a história e a natural evolução para uma sociedade mais justa, consciente e tolerante.

Combinar a liberdade com violência, sangue, sofrimento e morte é por isso depreciar um valor que para nós portugueses tem tanto significado e que associamos a fraternidade, amizade, tolerância e paz.

Incutir nas gerações mais jovens que o valor da liberdade pode justificar a prática de atos de crueldade com os animais é insensato e contrário aos princípios civilizacionais de respeito e compaixão pelos animais e repúdio pela violência, que a nossa sociedade procura estabelecer junto das crianças e jovens.

Liberdade nunca rimou com touradas.

touro antitourada liberdade
Bibliografia:
  • Solilóquio, pseud. “Touros e reação: Crónicas taurinas da temporada de 1974”. Lisboa : Depos. Livr. Petrony, 1975.
  • Sindicato Nacional dos Toureiros Portugueses. “Síntese do valor económico e social da raça bovina brava”. Lisboa : Sind. Nac. dos Toureiros Portugueses, [D.L. 1975].
  • Diário da Assembleia Constituinte nº 112. Sessão nº111 de 11 de Fevereiro de 1976.
  • “Morte ao fascismo o povo vencerá”. Diário de Lisboa (27 de Setembro de 1974).
  • Barreto, Mascarenhas. “Corrida: Breve história da tauromaquia em Portugal”. Lisboa: Ag. Port. Revistas, 1970.
  • Almeida, Jaime Duarte de. “História da Tauromaquia”. Lisboa: Artis, 1951.
  • Machado, Fernão Boto. “Abolição das touradas: projecto de Lei”. Lisboa: Typ. Bayard, 1911.