O touro não sofre e a terra é plana

sérgio Caetano
Sérgio Caetano

Alegado estudo de Illera Del Portal é falso e foi muito contestado pela comunidade veterinária.

É consensual que os touros sofrem muito nas touradas, especialmente em Portugal.

A ciência reconhece, há anos, a senciência dos animais e a sua capacidade de vivenciar e expressar sentimentos. Abrir novamente este debate é ignorar o conhecimento científico de séculos.

No entanto, a Federação Prótoiro alega que supostos “estudos científicos recentes” demonstram que os touros têm “reações hormonais únicas no reino animal“, que – alegadamente – lhes permite anestesiar-se quase imediatamente, como que por magia, bloqueando os recetores da dor.

Mas afinal, quais são os tais “estudos científicos recentes” a que se referem os aficionados das touradas?

O mais citado foi realizado pelo aficionado espanhol Illera del Portal há 15 anos atrás (em 2007) mas nunca foi reconhecido nem valorizado pela comunidade científica, nem nunca foi publicado em nenhuma revista científica, apesar de apresentar conclusões que – a ser verdade – seriam uma das maiores descobertas da ciência deste século!

Na verdade trata-se de uma tese, que defendia que, durante a lide, os touros produziam elevadas quantidades de umas substâncias chamadas “betaendorfinas” e que graças a elas, os animais eram capazes de neutralizar a dor e o stress a que são submetidos na arena, sem nunca esclarecer como ocorre esse surpreendente processo.

Vários veterinários criticaram e contestaram esta tese do veterinário espanhol (e aficionado da tauromaquia) Juan Carlos Illera Del Portal, por diversas falhas na apresentação do estudo e por este nunca ter conseguido explicar, de forma clara, quais os métodos usados para a realização do estudo ou para a obtenção daquelas surpreendentes conclusões.

Terra plana
Se os touros não sofrem, a Terra é plana.

Em algumas palestras realizadas em Espanha, Illera entrou várias vezes em contradição, alegando – por exemplo – que o touro, quanto mais sofre mais ataca, para depois relativizar a questão, argumentando que, ao descarregar endorfinas como resultado das agressões dos picadores, o touro já não sente qualquer dor.

Afinal o touro sofre ou não sofre?Sente ou não sente dor?

Este estudo nunca foi levado a sério pela comunidade científica e é uma questão atualmente ultrapassada em Espanha.

Os touros sofrem muito nas touradas porque são bovinos normais, sencientes e sensíveis como outros bovinos de outras raças, como a ciência demonstra há muitos anos.

A AVATMA (Associação de Veterinários Abolicionistas da Tauromaquia e do Maltrato Animal) foi das que mais contestou este estudo em Espanha, depois de analisar ao pormenor os métodos e conclusões de Illera del Portal, considerando que “depois de 5 anos a contrastar este tipo de informações, que pertencem mais à ‘sabedoria popular’ do que à científica, nós, os veterinários integrantes da AVATMA, podemos afirmar, tal como temos feito em variadíssimos fóruns, que estas conclusões carecem de fundamento e que são totalmente falsas“.

O artigo completo (em português) pode ser consultado aqui: https://avatma.org/betaendorfinas-portugues.

A subversão da realidade para tentar justificar o inaceitável, motivou o título deste artigo. Se o touro não sofre numa tourada, então a terra é plana.

A tourada portuguesa é menos cruel que a espanhola?

Outra afirmação comum, é a de que as touradas em Portugal não são tão cruéis para os animais como em Espanha, onde o touro é picado e morto na arena. De forma geral, as pessoas consideram que, neste aspeto, os espanhóis são bem mais cruéis do que nós, mas não é bem assim.

Apesar dos picadores e a morte do touro não serem autorizadas em Portugal (com exceção de Barrancos e Reguengos de Monsaraz), os animais sofrem bastante no final da lide e são sujeitos a um tratamento inqualificável, longe dos olhares do público. Além disso, há a questão dos cavalos, que apesar de esquecidos no debate sobre o tema, são sujeitos a intenso sofrimento em Portugal.

Retirada das bandarilhas
[1] Retirada das bandarilhas no final da tourada “à portuguesa” com recurso a navalha. (Foto: Plataforma Basta de Touradas)

Em Portugal desde meados do século XX as touradas passaram a realizar-se da forma que hoje as conhecemos, ou seja, numa versão mais suave aos olhos do público, sem que os touros sejam sujeitos à “sorte de varas” protagonizada pelos picadores no início da lide e à “sorte de morte” executada pelos matadores de touros no final.

Ao contrário do que é geralmente dito, esta versão portuguesa da tourada só começou a ganhar forma entre os anos 30 a 50 do século passado, com a publicação do primeiro Regulamento do Espetáculo Tauromáquico (1953), porque o regime daquela altura queria criar uma tourada genuinamente lusitana e distinta da tradição espanhola.

Para salientar a diferença e caráter lusitano das corridas de touros, Salazar promoveu uma “tourada à antiga portuguesa” no Campo Pequeno em 1949 com a presença de Franco ao seu lado na tribuna. Desta forma dava início a uma transformação nas touradas em Portugal, que até aí, eram meras imitações das touradas espanholas com as restrições de embolar os touros e não matar o animal no fim da lide.

Hoje em dia, muitas pessoas ainda consideram a tourada portuguesa como menos cruel para os animais e até apelidada de ‘bloodless‘ (sem sangue) para tentar atrair turistas, o que é totalmente falso.

Sendo certo que o espetáculo se tornou mais agradável aos olhos do público, com menos sangue e, digamos, menos violento, isso não significou uma redução do nível de sofrimento para os animais, muito pelo contrário.

embolas
[2] Processo de embolação dos touros antes da tourada.

Na verdade, a tourada “à portuguesa” constitui atualmente um dos espetáculos com animais mais cruéis em todo o mundo civilizado, senão o mais cruel de todos, tendo em conta os processos dolorosos a que são sujeitos os touros antes e depois da corrida. Falo dos legalmente permitidos.

Poucas horas antes do espetáculo, os touros – depois de separados do resto da manada – são imobilizados e são-lhe cortados os cornos com uma serra, sendo depois revestidos com as chamadas “embolas” de ferro forradas a couro, processo doloroso e bastante stressante para o animal.

Depois de terminada a corrida não recebem qualquer tipo de assistência veterinária. Em vez disso, ainda vivos, são novamente imobilizados para que lhes sejam arrancadas as múltiplas bandarilhas e ferros que têm espetados no dorso.

Para retirar as várias lâminas cravadas é necessário efetuar alguns cortes na carne do animal, com uma navalha, para conseguir remover os arpões.

Os touros são depois transportados para o matadouro, gravemente feridos, onde esperam pelo abate, geralmente realizado à segunda-feira.

Os animais são acondicionados em condições degradantes, dentro de um pequeno contentor no camião de transporte onde não se conseguem movimentar, nem sequer deitar. São obrigados a permanecer nestas condições até ao momento do abate, sem água nem alimento. Alguns morrem antes de entrar no matadouro, como demonstram estudos realizados.

A “tourada à portuguesa” é vista pela afición espanhola como um desvirtuamento completo do verdadeiro ritual tauromáquico, e uma fraude inaceitável, não só pela ausência da “sorte de morte” (que culmina a lide) mas também pelo embolamento dos cornos dos touros que é considerada uma farsa em todo o mundo taurino e expressamente proibida.

Também no nosso país, a “tourada à portuguesa”, inicialmente conhecida como “festa mansa“, não foi muito bem aceite no início e por vezes criticada de forma veemente pelos próprios aficionados: “A corrida de toiros foi cultivada durante séculos na península. Em Portugal, porém, decaiu a tal ponto que se transformou graças à falta de escrúpulos de certos traficantes da Tauromaquia, nesse espetáculo reles a que os empresários começaram a chamar anti-patrioticamente, a tourada à portuguesa.” escreveu Nizza da Silva no Jornal “Sector 1” em 1933.

A crueldade da tourada “à portuguesa” foi pela primeira vez denunciada numa reportagem publicada em 2004 na Revista “Grande Reportagem”, que conseguiu entrar nos obscuros bastidores de uma praça de touros relatando uma realidade sombria desconhecida da maioria dos cidadãos e que ocorre nos curros, durante a corrida ou já depois dos espetadores regressarem as suas casas:

“A corrida terminou às oito da noite e o último touro foi já carregado debaixo dos olhares de muitos curiosos e habilidosos. Confusão, falta de visibilidade, medo. O último touro revoltou-se, guerreou, tentou atingir quem estava por perto. As suas cornadas afetaram os outros animais já carregados, e pouco foi preciso para que todos se enervassem e começassem às cornadas dentro das respetivas cabinas. Os homens gritaram, incitaram-no com o pano pendurado, o touro teimou em não entrar. Até quando lhe deram pequenos choques elétricos na traseira ele não entrou. E foi aí que entre gritos e confusão recomeçou o mugido longo, o uivo, o chamamento das baleias. Longo e gutural. Quase um lamento.”
Revista Grande Reportagem, 2004.

A crueldade escondida na ilegalidade

Também na sombra, os picadores fazem o seu trabalho em Portugal. Apesar de proibida nas arenas, a “sorte de varas” não foi erradicada do nosso país e continua, de de forma ilegal, a ser prática fundamental para manter o nível artístico das corridas.

Todos os anos centenas de animais são ‘picados’ pelas afiadas lanças dos picadores em herdades privadas do Alentejo e Ribatejo, nas chamadas ‘tentas‘ que servem para selecionar os animais com caraterísticas físicas e morfológicas para participar nas touradas.

As tentas com picadores decorrem de forma impune nas ganadarias e constituem um processo fundamental para obter animais com um comportamento que permita efetuar as lides artísticas e o triunfo dos toureiros, já que, com um comportamento natural, os touros não “colaboravam” com os artistas da mesma forma e seria impossível realizar as lides e as pegas dos forcados.

Atualmente, mais de 2.000 touros são mortos todos os anos em Portugal em consequência da realização de touradas, depois de um sofrimento atroz e prolongado. Estes números referem-se apenas aos animais que são lidados nos espetáculos tauromáquicos licenciados pela Inspeção Geral das Atividades Culturais (IGAC).

A estes têm que se juntar os milhares de animais utilizados nas largadas de touros, nas demonstrações de toureio, eventos ilegais (não licenciados pela IGAC), nos treinos dos artistas e dos forcados, nas tentas privadas, etc.

O processo a que se sujeitam estes animais, até ao abate no matadouro, é inqualificável e, por esse motivo, escondido ao máximo da opinião pública. A cesso aos curros, por exemplo, é expressamente proibido por lei.

“Houve concurso numerosíssimo, em despeito da inclemência do dia – 14 animais atormentados – um dos homens de forcado morto, ou pouco menos, um cavaleiro despejado da sela, dez homens maltratados e escorrendo em sangue – e por sobre isto tudo as gritas de uma multidão selvagem. O espetáculo de morte era presidido e dirigido pela autoridade pública, cuja missão devera ser a de tutelar os mais preciosos tesouros, moral, costumes, sentimentos, civilização.”
José Feliciano de Castilho, Uma Corrida de touros – 1842

Aficionados confirmam crueldade

A terminar, e para quem ainda possa ter dúvidas, apresento dois testemunhos de pessoas ligadas ao meio tauromáquico, que puderam comprovar a crueldade escondida nas touradas, atrás dos muros dos curros da praça de touros. Um deles é o ex-Presidente da Câmara Municipal de Azambuja, que escreveu um testemunho impressionante nas redes sociais. O outro, do antigo proprietário da praça de touros de Alcochete que testemunhou o processo de arranque das bandarilhas e João Silva, um jovem matador de touros, que faz a revelação em resposta às críticas dos detratores das touradas:

Em Espanha morrem e acabou-se. Em Portugal no fim da lide, inicia-se o maior processo de selvajaria que se possa imaginar. Sim, porque não é o Dr. Joaquim Grave que está nos curros ou em cima das camionetas a arrancar bandarilhas, escarafunchar feridas, injetar desinfetantes com seringas e borras de clister, puxar daqui e dali. São normalmente pessoas sem preparação e impiedosas que acham imensa graça aos urros de dor dos animais. Digo-te com conhecimento de causa, porque uma vez no Alandroal, fiquei num lugar com acesso visual completo aos curros. E o que vi não foi bonito.

Joaquim António Ramos – (ex-Presidente da Câmara Azambuja) – 15/5/2014

(…) regressei à praça após uma corrida e vi uma coisa que não gostei. Nunca tinha pensado em tal situação. Como na altura fazia parte de um “blogue” de Alcochete, contei a história e sugeri que os animais, aquando desta inevitável situação, fossem anestesiados localmente (pois há um veterinário presente em cada corrida de toiros) antes das bandarilhas lhes serem arrancadas. Acho que não há nada de mau nem de mal nesta sugestão, mas mesmo assim, recebi tantas críticas, muitas delas extremamente desagradáveis, que decidi nunca mais assistir a uma corrida de toiros.

João Dias de Sousa – (ex-proprietário da praça de touros de Alcochete) – Entrevista ao site “Toureio.pt” publicada em 22/12/2017

Os toiros em Portugal são mortos no matadouro depois de terem jogado a vida e de terem lutado por ela, mas vão num camião sedados e passam dois dias cheios de dores e febre. Isso é que é sofrer”.

João Silva “Juanito” (matador de touros) – entrevista ao Jornal “O Mirante” 28-09-2021

Fontes:

  • Jornal “O Mirante”, edição de 18 de outubro de 2006.
  • Marta Curto, “As últimas 24 horas da vida de um touro”. Grande Reportagem, 25 de Set. 2004
  • Silva, Nizza da. “Respostas”, O Sector 1, no 13. (17 de Setembro de 1933)
  • Revista Universal Lisbonense, Tomo I, anno de 1841-1842. Lisboa: Imprensa Nacional, 1842.
  • Kossakowski, Juliusz; Bishop, Matthew. “Taking the Face: the portuguese bullfight” [Documentário]. Portugal: Wind Fish Motion Pictures Ltd, 2008. (DVD)
tourada portugal basta 02
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