Artigo de José Feliciano de Castilho publicado na Revista Universal Lisbonense. Lisboa: Imprensa Nacional, 7 de abril de 1842. Pág. 317
Celebrou-se no dia 4, aniversario da Rainha, uma dessas festas a que chamam nacionais: as circunstancias que ordinariamente as acompanham, acompanharam-na.
Houve concurso numerosíssimo, em despeito da inclemência do dia – 14 animais atormentados – um dos homens de forcado morto, ou pouco menos, um cavaleiro despejado da sela, dez homens maltratados e escorrendo em sangue – e por sobre isto tudo as gritas de uma multidão selvagem.
O espectáculo de morte era presidido e dirigido pela autoridade publica, cuja missão devera ser a de tutelar os mais preciosos tesouros, moral, costumes, sentimentos, civilização. (…)
Precisais divertir o publico? “Mais panem, menos Circenses“.
E miserável imaginativa é a vossa se não encontrais melhor meio do que este. Facilitai-lhe as reuniões com ordem e prazer – os teatros – os passeios – as feiras – as romarias – as festas de arraial – a convivência; dai-lhe o que quiserdes , menos lições de antropófagos.(…)
Vinde, partidários das sensações fortes, e esclarecei-me. Quais são os resultados proveitosos que de tais vistas esperais?
Desenvolvimento de coragem? Lembrai-vos que esses homens que aí vos sacrificam a vida, têm mulheres, filhos e fome; que falta por tanto ao acto que praticam a espontaneidade , a liberdade, e a utilidade, partes sem as quais não ha coragem, mas demência.
Agilidade? Embora, mas tendes os exercícios ginásticos que a desenvolvam sem risco, e muito mais extensamente.
Desprezo da vida? Essa tese é destruidora; é crime desprezar a vida expo-la inutilmente: o homem não é senhor dos seus dias, e tais doutrinas santificariam o homicídio e o suicídio.
Distração das turbas? Bem sei que o recreio é a válvula de segurança das sociedades, mas esse recreio, para que elas o tolerem, deve ser inocente e honesto; e um século de prazeres de cem milhões de homens não paga a vida desse desgraçado que aí vi cair morto. Com que direito estigmatizamos nós os antigos tiranos? não se apascenta este povo soberano e silvestre na morte dos gladiadores? não bate as palmas ao — ave imperator, morituri te salutant?
Ignoro se esses homens, a quem damos a profissão de matar com graça, de atormentar com elegância, de esfaquear com agilidade, são efetivamente o que a lógica os obriga a ser. Quem, por uns poucos cruzados, já em frente já á traição, a adversário que nem o provocou, nem lhe fez mal, e vinte vezes mais poderoso, espanca, esfaqueia e mata – por outros tantos cruzados ou por vingança espancará , esfaqueará e matará, em frente ou á falsa fé, a um homem, adversário igual, ou, por desprevenido, inferior. Instituição magnifica para a sociedade é pois esse viveiro de assassinos!
Tanto nos aturdem os ouvidos com o que vai lá fora! Pois lembrem-se que só nós e os nossos vizinhos nos enxovalhamos com tais monstruosidades; que na Inglaterra, na America, na Alemanha, na vanguarda da verdadeira civilização, não ha sociedades mais respeitadas e numerosas do que as destinadas á protecção dos animais; que de todo esse mundo desapareceram os pugilatos, as esporas dos galos, os leões e cães de fila, e quantas selvajarias toleraram os tempos em que os Touros talvez não seriam anacronismo.
O próprio regime sob que vivemos impõe a necessidade de tal supressão. O absolutismo, império de um sobre muitos, carece do terror, que sujeita as forças físicas e morais desses muitos à vontade desse um; aí concebo ainda os espectáculos que semeiam disposições terríficas. O liberal só pode selo quando a sua alma for toda amor para com seus semelhantes ; aí o império é dos muitos sobre muitos, e os espectáculos que a sã política prescreve só são os que desenvolvem tendências de brandura e fraternidade.
(…) Mais longa vida tiveram os autos da fé, o ferro em brasa, os tratos, e passaram: uso é sucessão de actos; suprima-os a autoridade, e o uso acabará. Será porque o nosso clima exija prazeres de fogo, porque as nossas artérias queiram lava em vez de sangue? Não blasfemeis, contentai-vos com o mal que produzis , sem que a calunia o venha ainda envenenar; não, o coração dos Portugueses não é a escoria da humanidade: o povo é essencialmente bom, e prova é que, apesar de tanto procurar perverte-lo, ainda não está pervertido.
Para coroar dignamente este antropófago banquete, eu, que nele me sentei pela primeira e ultima vez, vi insultar quanto o universo encerra mais venerável. Vi insultar a religião, espezinhando-se o seu mais belo dogma, o do amor e da humanidade. Vi insultar a Liberdade, preparando germes que só podem aniquila-la. Vi insultar a caridade, tornando a primeira instituição pia do Estado, em cujo beneficio rolava o ouro, cúmplice de cenas tais. Vi insultar o trono, escolhendo o seu dia para encher de sangue um copo do real festim.
Nada mais. A nós a palavra, a quem cumpre a obra.
José Feliciano de Castilho.
Jornalista, escritor e advogado português.