Infância sem violência é uma campanha que tem por objetivo proteger as crianças e jovens da violência da tauromaquia.
1. A CAMPANHA “INFÂNCIA SEM VIOLÊNCIA”
“Infância Sem Violência” é uma campanha lançada pela Fundação Franz Weber, desenvolvida em Portugal em parceria com a Plataforma Basta de Touradas e a associação ANIETIC, que tem como objetivo afastar as crianças da participação e observação de atos e de espetáculos que impliquem sofrimento e maltrato de animais, como forma de obter no futuro uma sociedade mais pacífica e com maior empatia em relação ao sofrimento, que rejeite qualquer forma de violência, independentemente da vítima.
Utilizando a Ciência e o Direito como principais ferramentas, a Campanha propõe-se trabalhar em três vertentes a curto prazo:
1.1 As crianças como espectadores de violência
O impacto de presenciar imagens de violência, causa nas crianças, cicatrizes psicológicas profundas;
Ao impacto emocional, deve acrescentar-se a falta de ferramentas mentais e psicológicas para processar e compreender a crueldade das imagens, já que estamos a falar de mentes que ainda estão em formação.
Nas touradas e nos festejos populares (com touros, novilhos, vacas, etc.) as crianças, não só são testemunhas da violência aplicada sobre os animais, mas também de muitos acidentes, mortes violentas de pessoas e imagens impactantes de cornadas. O que presenciam estas crianças distingue-se em grande medida da violência dos filmes, séries de televisão ou videojogos, já que no caso das touradas e festejos taurinos populares, as cenas contempladas são de violência real, e não ficção.
No caso dos festejos taurinos populares (largadas de touros, garraiadas, etc.) o problema é ainda maior, já que além do impacto psicológico de presenciar mortes violentas, acrescenta-se o risco para a integridade física dos menores como se comprovou recentemente (2022) com a morte de um jovem de 15 anos numa largada de touros na Moita.
1.2 As crianças toureiros
As crianças toureiros são todos os menores de 18 anos, que trabalham nas arenas e praças de touros, enfrentando um animal para feri-lo. Realizam exatamente o mesmo espetáculo que os toureiros adultos, mas não têm o poder de decisão destes, já que são os seus pais que conduzem as suas carreiras profissionais e tomam todas as decisões por eles.
Uma criança toureiro é um trabalhador, já que recebe dinheiro previamente acordado para participar no espetáculo, só que estes contratos são negociados entre empresários e ‘apoderados’, sem que a criança participe nestas negociações; para o mundo taurino, a criança está preparada para enfrentar a morte ou para matar, mas não para decidir quanto dinheiro quer receber para o fazer. Isto dá-nos a referência de que estamos a falar de uma forma de exploração infantil, muitas vezes por parte das suas próprias famílias, já que, na maioria dos casos, são os pais que cumprem as funções de “representante” ou “apoderado” da criança toureiro.
As condições de falta de segurança em que as crianças realizam este tipo de trabalho, seria suficiente para declarar a tauromaquia como culpada pelo incumprimento da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, ratificada pela Assembleia Geral na sua Resolução 44/25, de 20 de novembro de 1989, algo que sucedeu recentemente como reconhecimento do Comité dos Direitos da Criança de que a tauromaquia viola a Convenção e que os Estados que a subscreveram têm o dever de proteger as crianças e jovens deste tipo de violência.
1.3 As escolas de toureio
Conhecer o que acontece dentro de uma escola de toureio é uma tarefa muito difícil, dado o secretismo e opacidade com que são realizadas estas aulas, principalmente as aulas práticas.
Alguns regulamentos que definem a atividade destas escolas em Espanha, chegam a proibir expressamente, a presença dos pais ou de público durante as aulas práticas das crianças com bezerros e vacas.
No entanto, existem inúmeras gravações em vídeo que mostram, através da crueldade das imagens, que esta é uma atividade em que as crianças não são incentivadas a desenvolver valores como a empatia, mas sim o contrário, alimentando-se de ideias baseadas em conceitos como o individualismo e a superioridade.
No caso de Portugal estas escolas não têm qualquer tipo de regulamentação, ficando as crianças nas mãos dos responsáveis pelas escolas, sem qualquer tipo de proteção. Esta falta de regulamentação não impede as autarquias de financiar com fundos públicos o funcionamento das escolas de toureio, constituídas como “associações culturais”.
2. AS CRIANÇAS E A VIOLÊNCIA DAS TOURADAS EM PORTUGAL
Em Portugal, os espetáculos tauromáquicos (onde se incluem as corridas de touros, corridas mistas, novilhadas, novilhadas populares, variedades taurinas e festivais tauromáquicos) estão classificados para maiores de 12 anos. (Decreto-Lei nº 23/2014 de 14 de fevereiro, alínea c) do no 1 do artigo 27º).
A classificação etária atrás referida, ainda de acordo com o Decreto-Lei nº 23/2014 de 14 de fevereiro, “consiste em aconselhar a idade a partir da qual se considera que o conteúdo não é suscetível de provocar dano prejudicial ao desenvolvimento psíquico ou de influir negativamente na formação da personalidade dos menores em causa”.
Ao mesmo tempo, o Estado reconhece que “o espetáculo pode ferir a susceptibilidade dos espetadores”, advertência obrigatória em todos os cartazes de publicidade a espetáculos tauromáquicos.
Significa que, se por um lado o Estado admite que o espetáculo tauromáquico pode ferir a suscetibilidade dos espetadores, por outro autoriza que crianças maiores de 3 anos assistam a espetáculos onde, além do colorido dos trajes e dos acordes da música, se inclui:
- Sangue verdadeiro de animais e dos artistas;
- Acidentes violentos que resultam em feridos graves e mortes;
- Utilização de armas letais (espadas e bandarilhas);
- Violência e maus tratos a animais (cavalos e touros).
Nos últimos dois anos (2017 – 2019) registaram-se diversos tipos de acidentes violentos que resultaram em 2 mortos e mais de 400 feridos, muitos dos quais em estado grave. Estes acidentes, grande parte deles com imagens de extrema violência, foram testemunhados por crianças maiores de 3 anos, situação fortemente condenada pelo Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas que adverte Portugal a aumentar para 18 anos a idade mínima de acesso a este tipo de espetáculos, sem exceções.
2.1 A exposição de crianças e jovens a episódios violentos
Frequentemente, os eventos tauromáquicos são acompanhados de acidentes graves, resultantes da colhida de cavalos ou dos próprios intervenientes humanos. Muitos destes acidentes são de um grau de violência bastante elevado e resultam em feridos graves e até mortes.
Estes são apenas alguns dos acidentes graves mais recentes ocorridos em eventos tauromáquicos em Portugal, que foram testemunhados por crianças de todas as idades:
- Agosto 2017 (Arruda dos Vinhos) Um touro fugiu da zona onde decorria uma largada e andou solto pelas ruas da vila tendo colhido algumas pessoas, incluindo um bebé e uma mulher grávida.
- Setembro 2017 (Cuba) – O forcado Pedro Primo morreu após uma violenta colhida de um touro na praça de touros de Cuba.
- Setembro de 2017 (Moita) – O forcado Fernando Quintela morreu na sequência de uma violenta colhida por um touro na praça de touros da Moita do Ribatejo.
- Agosto de 2018 (Arruda dos Vinhos) – Um forcado ficou com uma bandarilha cravada no peito, tendo sido retirado da arena perante os olhares horrorizados do público.
- Maio de 2019 (Moura) – Forcado colhido com violência, foi arrastado durante 3 metros com embate violento que provocou esmagamento que afetou o fígado, provocando-lhe um forte hematoma e hemorragias. O forcado foi internado no Hospital Curry Cabral em estado grave.
- Julho de 2019 (Coruche) – O cavalo de João Moura Júnior foi brutalmente colhido na praça de touros de Coruche, acidente que resultou em diversos ferimentos no cavaleiro, que teve que ser suturado na cara e posterior abate do cavalo. Na mesma corrida de touros, a cavaleira Ana Batista também sofreu uma forte colhida e caiu do cavalo, sendo transportada para o Hospital de Santarém. Dois forcados tiveram que ser assistidos depois de acidentes violentos. Um dos forcados perdeu os sentidos na arena e outro sofreu uma fratura no maxilar e teve de ser transportado de helicóptero para o Hospital de São José, em Lisboa.
- Agosto de 2019 (Nazaré) – Oito forcados feridos, dois em estado grave, na sequência de acidentes graves numa corrida de touros na praça de touros da Nazaré. Um dos forcados foi projetado contra as tábuas, perdeu os sentidos e teve que ser transportado para o Centro Hospitalar de Leiria. Outro sofreu diversos ferimentos graves, e por suspeitas de fratura da tíbia e perónio foi transportado ao Hospital.
- Outubro de 2019 (Vila Franca de Xira) – Colhida violenta do matador de touros Nuno Casquinha que teve que ser assistido na enfermaria da praça de touros.
- Novembro de 2019 (Redondo) – Colhida violenta do forcado Luís Feiteirona com fratura exposta da perna. Foi retirado de maca da arena e transportado ao Hospital.
- Maio de 2022 (Moita) – Um jovem menor de idade (15 anos) morreu numa largada de touros organizada pela Câmara Municipal da Moita. O jovem foi colhido pelo touro e perfurado na garganta, não tendo resistido à violência das colhidas. O episódio violento foi testemunhado por centenas de pessoas, incluindo crianças.
2.2 A exposição a um ambiente de tensão e medo
Além da violência contra animais as crianças são expostas a um ambiente de medo, tensão e ansiedade nas praças de touros na sequência destes acidentes que ocorrem frequentemente e que produzem enorme tensão nas bancadas, sendo notários os efeitos negativos que este ambiente produz nas crianças.
Além disso as crianças são ainda expostas a sangue verdadeiro das hemorragias dos animais, mas também ao sangue que fica espalhado pelas roupas, na cara e nos membros dos artistas intervenientes.
Se aos adultos reconhecemos a capacidade de tomar a decisão de se expor, como participantes ou como espetadores, à violência destes eventos, em relação às crianças e aos jovens tanto o bom-senso como a investigação em Psicologia como o próprio Comité dos Direitos da Criança da ONU apontam claramente a necessidade de os proteger deste tipo de práticas.
Diversos especialistas têm demonstrado que a exposição das crianças a este tipo de violência é claramente nefasta para as mesmas.
Lockwood (2007)1 identificou seis resultados adversos da exposição das crianças à crueldade para com animais:
- Promove a dessensibilização e prejudica a capacidade da criança para a empatia;
- Cria a ideia de que as crianças, tal como os animais, são dispensáveis;
- Prejudica o sentido de segurança e confiança na capacidade dos adultos para as protegerem do perigo;
- Conduz à aceitação da violência física em relações interpessoais;
- Faz com que as crianças possam procurar uma sensação de empowerment infligindo dor e sofrimento;
- Leva à imitação de comportamentos abusivos.
A própria Ordem dos Psicólogos Portugueses já se pronunciou sobre o “Impacto Psicológico das Crianças aos eventos tauromáquicos”. Num parecer emitido em junho de 2016, a OPP conclui que “da evidência científica enunciada parece ressaltar o facto de que a exposição à violência (ou a actos interpretáveis como violentos) não é benéfica para as crianças ou para o seu desenvolvimento saudável, podendo inclusivamente potenciar o aparecimento de problemas de Saúde Psicológica.”2.
1 Lockwood, R. (2007). Climates of kindness and cruelty: What does the research tell us?.Paper presented at the Green Chimneys Conference on Humane Education, Empathy, Animals & Nature: Brain, Behavior & Beyond, Brewster, NY.
2 Impacto Psicológico das Crianças aos eventos tauromáquicos (2016). OPP.
2.3 O risco de acidentes graves
A presença constante de crianças nas bancadas e nas trincheiras das praças de touros (no espaço entre a bancada e a arena) é suscetível de gerar acidentes graves, devido ao risco elevado do touro saltar a barreira e invadir a trincheira e/ou a bancada.
No dia 1 de setembro de 2019, um touro saltou para a bancada da praça de touros de Girona (Espanha) lançando o pânico entre os espetadores causando 17 feridos, um deles em estado muito grave.
Em Portugal, no passado dia 12 de setembro de 2019 na praça de touros da Moita, durante uma corrida de touros, um dos bovídeos saltou para a trincheira colhendo um fotógrafo, que foi hospitalizado em estado muito grave. Ao saltar para o espaço entre a bancada e a arena, o touro arrancou o escalpe da cabeça do fotógrafo, acidente que foi testemunhado por dezenas de crianças que se encontravam na praça de touros. A apenas 1 metro da vítima, estava uma criança pequena na bancada.
A plataforma Basta de Touradas tem vindo a denunciar a constante presença de crianças nas trincheiras e nas bancadas das praças de touros, alertando para os riscos de um acidente muito grave, sem que as autoridades ponham cobro a esta situação.
Além disso, têm sido denunciadas participações de crianças menores de 16 anos em eventos tauromáquicos em vários pontos do país, a maioria deles promovidos de forma ilegal, sem licenciamento da Inspeção Geral das Atividades Culturais e sem as mínimas condições de segurança e assistência médica.
3. O COMITÉ DOS DIREITOS DA CRIANÇA
O Comité dos Direitos da Criança da ONU já se pronunciou contra a violência da tauromaquia e o seu impacto nas crianças, nos relatórios de avaliação de todos os países onde persiste esta prática (Portugal, Espanha, França, Peru, México, Colômbia, Equador e Venezuela).
Em setembro de 2019, o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas analisou o cumprimento desta legislação em Portugal e a forma como as crianças e jovens portugueses estavam a ser expostos à violência da tauromaquia, ouvindo as entidades do Estado e as ONG’s.
Os 18 peritos internacionais do Comité da ONU concluíram que Portugal não está a cumprir a Convenção dos Direitos da Criança nesta matéria ao expor crianças (menores de 18 anos) a uma atividade violenta que coloca em risco a sua saúde e segurança, pelo que advertiu o Estado Português a adotar medidas para impedir o acesso dos menores de 18 anos, sem exceção, à violência das touradas e largadas de touros e a realizar campanhas de sensibilização sobre este assunto. A declaração incluída no relatório de avaliação de Portugal é bastante clara:
“O Comité recomenda que o Estado Parte (Portugal) estabeleça a idade mínima para participação e assistência em touradas e largadas de touros, inclusive em escolas de toureio, em 18 anos, sem exceção, e sensibilize os funcionários do Estado, a imprensa e a população em geral sobre efeitos negativos nas crianças, inclusive como espectadores, da violência associada às touradas e largadas.” – Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas, 27 de setembro de 2019.
Este pronunciamento foi uma das maiores vitórias da campanha “Infância Sem violência“, desenvolvida pela Plataforma Basta de Touradas (em parceria com a Fundação Franz Weber) revelando uma realidade desconhecida da maioria dos portugueses: a exposição das crianças a episódios de extrema violência (incluindo a morte de humanos), mas principalmente como artistas tauromáquicos, ao colocar as crianças em frente a animais capazes de matar um adulto.
Relatórios finais do CDC das Nações Unidas (de avaliação a Portugal):
RELATÓRIOS DO COMITÉ DOS DIREITOS DA CRIANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS:
Portugal:
2019: Portugal – 27 de setembro (Pág. 8, artigo 27)
2014: Portugal – 31 de janeiro (Pág. 10, artigos 37 e 38)
Outros países:
Colômbia – 4 de fevereiro de 2015: CRC C COL CO 4-5 (Págs. 7, 8, 17)
México – 8 de junho de 2015: CRC/C/MEX/CO/4-5
Espanha – 8 de fevereiro de 2018: CRC/C/ESP (Artº 25)
França – 23 de fevereiro de 2016: CRC/C/FRA (Artº 42 e 43)
Peru – 2 de Março de 2016: CRC/C/PER (Artº 41)
Infelizmente os alertas do Comité dos Direitos da Criança têm vindo a ser ignorados pelo Estado Português. Três anos após o alerta do Comité para o elevado risco das “largadas de touros” e para a necessidade de proteger as crianças e jovens deste tipo de atividades perigosas, um jovem de apenas 15 anos morreu de forma extremamente violenta numa largada na Moita, perfurado na garganta e com dezenas de crianças e jovens a assistir a tudo. Até ao momento, não houve qualquer reação das autoridades nem apuramento de responsabilidades, apesar do evento ter sido promovido pela Câmara Municipal.
4. A ORDEM DOS PSICÓLOGOS PORTUGUESES
Na sequência do debate em volta deste assunto, vários especialistas e instituições insurgiram-se contra a exposição das crianças à violência da tauromaquia.
A Ordem dos Psicólogos Portugueses pronunciou-se em Junho de 2016, através de um parecer enviado à Assembleia da República no âmbito de um projeto apresentado pelo PAN, sobre o impacto psicológico da exposição de crianças a espetáculos tauromáquicos, considerando que a exposição das crianças à violência “não é benéfica para as crianças ou para o seu desenvolvimento saudável, podendo inclusivamente potenciar o aparecimento de problemas de saúde psicológica”.
O parecer da Ordem dos Psicólogos pode ser consultado aqui:
5. A AMNISTIA INTERNACIONAL
A Amnistia Internacional também se pronunciou contra a exposição de crianças à violência das touradas em Portugal, durante a discussão da Proposta de Lei nº 209/ XII (3ª) do Governo, que estabelece o regime de acesso e exercício da atividade de artista tauromáquico e de auxiliar de espetáculo tauromáquico, abrindo a exceção para crianças que atuam como artistas “amadores”.
A instituição de direitos humanos considerou que as crianças e jovens não podem participar em touradas por se tratar de uma atividade violenta e que coloca em risco a sua segurança e saúde. Neste sentido, adverte a Assembleia da República e os seus constituintes que “considerem e fundamentem sempre o superior interesse da criança nos documentos que a estas digam respeito e que façam cumprir tratados e convenções internacionais assinados pelo Governo da República e ratificados por esta Assembleia”.
Consulta aqui o parecer da Amnistia Internacional:
- Parecer da Amnistia Internacional sobre a Proposta de Lei nº 209/ XII (3ª) (GOV) – Atividades tauromáquicas
Fotos: ©Basta de Touradas – Feira Nacional de Agricultura em Santarém (junho de 2018)