Touradas, violência e desprezo pela vida

sérgio Caetano
Sérgio Caetano

Ninguém pode duvidar que as touradas contrariam, de forma absoluta, os princípios do bem estar e do respeito pelos direitos dos animais. Nas sociedades modernas e civilizadas, não há lugar para diversões que assentam em agredir e fazer sofrer animais.

O setor das touradas continua a negar este facto, acrescentando que este espetáculo contribui para elevar os valores humanos dos seus espectadores.

Na sua página web, a Federação Prótoiro salienta que as touradas “promovem valores humanistas”, sendo “uma escola de virtudes“. Acrescentam que nas praças de touros “se pode ver, sentir e apreciar, talvez como em nenhum outro local, nos dias que correm, valores como o respeito, a dignidade, a coragem, a amizade, a força de vontade, a lealdade ou a solidariedade, valores que enriquecem o público e tornam mais humano e sensível“.

Mas será mesmo verdade? Ou apenas parte de um golpe de marketing para tentar suavizar a imagem e atrasar a abolição desta sangrenta tradição?

Quando em maio de 2022 um touro perfurou mortalmente um adolescente de apenas 15 anos na Moita, ferindo-o mortalmente, o corpo do menor de idade foi recolhido do recinto das festas, organizadas pela Câmara Municipal. Apesar da extrema violência da colhida, testemunhada por outras crianças, as festas continuaram normalmente nos dias seguintes.

colhida em tourada portuguesa
A violência da tauromaquia é incompatível com valores humanitários

Ninguém assumiu a responsabilidade pela morte brutal desta criança e no dia em que se assinalava 1 ano deste brutal acidente, a Câmara da Chamusca promoveu uma largada de touros, especialmente dirigida aos mais jovens.

Neste, como em muitos outros casos, os valores de dignidade, solidariedade e respeito pela vida humana, foram completamente ignorados pelos responsáveis tauromáquicos. Ninguém pode afirmar que episódios como este, tornam o público “mais humano e mais sensível“. O próprio Comité dos Direitos da Criança condena a exposição de crianças à violência das touradas e alertou para o elevado risco das largadas de touros em Portugal.

Sendo as touradas reminiscências de um Portugal conservador, marialva e profundamente machista, não é de admirar que as praças de touros portuguesas tenham sido palco, durante longos anos, de episódios verdadeiramente deploráveis do ponto de vista dos direitos humanos.

O caso da Moita não é um caso isolado. Todos os anos a tauromaquia provoca vítimas mortais em Portugal, especialmente nas largadas de touros. Nestes casos, é comum que os corpos dos mortos sejam retirados do recinto para permitir que a “festa” prossiga com toda a normalidade. Faz parte da “festa” e a tradição não pode parar, dizem autarcas e defensores da tauromaquia.

A ligação entre a tauromaquia e a violência tem um passado recheado de exemplos que envergonham a nossa civilização.

Há cerca de 180 anos atrás (1844), ainda era comum a presença de escravos nas touradas em Portugal, como se comprova nas páginas do Diário do Governo onde um requerimento do Bispo de Elvas faz referência a um episódio “durante uma corrida de touros , que houve na praça de lugar da Nazaré, alguns homens pretos foram ali tratados com extrema barbaridade“. Anos antes, nos cartazes de propaganda a uma tourada em Lisboa, anunciava-se que a arena seria limpa “pela Companhia da cor tostada”.

Dezenas ou centenas de escravos foram barbaramente mortos nas praças de touros portuguesas. Trazidos das colónias portugueses em África, os escravos eram usados nos intervalos das touradas para divertir o público. Colocados na arena, muitas vezes vestidos com os seus exóticos trajes tradicionais, eram lançados aos touros, desarmados e totalmente desprotegidos. O resultado era óbvio: os animais colhiam e lançavam os desgraçados pelos ar, no meio de gritos e sangue, enquanto o público se desfazia em gargalhadas.

Um desses números era designado “os pretos em cavalinho de pasta“, em que os escravos apareciam na arena montados em cavalos de pano, ridicularizados e arrancando gargalhadas do público enquanto os touros os levantavam no ar com extrema violência.

Estas práticas desumanas só começaram a desaparecer das praças de touros nos finais do século XIX, com a abolição definitiva da escravatura em Portugal.

Escravatura e touradas: pretos com cavalinho de pasta
Os pretos com cavalinho de pasta, litografia de C. Legrand, Sec. XIX, Museu da Cidade, Câmara Municipal de Lisboa

Termino citando o ilustre jornalista, escritor e advogado português, José Feliciano de Castilho, relatando a primeira (e única vez) que assistiu a uma tourada, no ano de 1842: “vi insultar quanto o universo encerra mais venerável. Vi insultar a religião, espezinhando-se o seu mais belo dogma, o do amor e da humanidade. Vi insultar a Liberdade , preparando germes que só podem aniquila-la. Vi insultar a caridade, tornando a primeira instituição pia do Estado, em cujo beneficio rolava o ouro, cúmplice de cenas tais. Vi insultar o trono, escolhendo o seu dia para encher de sangue um copo do real festim“.

Afirmar que numa tourada se pode apreciar, como em nenhum outro local, valores como o respeito, dignidade ou solidariedade que enriquecem o público e o tornam mais humano e sensível, é ignorar o passado e fechar completamente os olhos à violência e ao sofrimento atroz dos animais na arena.