A Primavera

António Feliciano Castilho
António Feliciano Castilho.

«E quê? Algum de nós contra o que vive / ousaria vibrar da morte a foice? / O toiro sofredor, cuja fereza / para servir-nos se abateu ao jugo, / o toiro, o nosso amigo, o nosso escravo, / que sem ter parte alguma em nossos gostos / tomava parte nas fadigas nossas; / que armado pelas mãos da Natureza / podia, se quisesse, opor-se aos fracos, / que a paz, que a liberdade ousam roubar-lhe, / depois de longo, aviltador serviço / deve… (oh pejo! oh furor! oh sacrilégio!) /cair às mãos do bárbaro assassino, / para quem só viveu, por quem mil vezes / coberto de suor, cheio de espuma, / co’a fronte baixa, sem mugir ao menos, / queimado pelo sol, até sofria / duro férreo aguilhão, se fraquejava.

Qual ousaria ensanguentar a destra / na mansa ovelha, da inocência imagem, / que incapaz de ofender, nunca rebelde / aos brados do pastor, seu próprio leite / entre seus filhos e ele repartia, / e até para cobri-lo as lãs lhe dava.

Lindos filhos do ar, ternos cantores, / que inocentes voais pelas florestas, / nos prazeres, no amor gastando a vida, / filhos do céu, modelos, que adoramos, / não temais habitar nos campos nossos. / […] se nos virdes passar… oh! por piedade / não fujais, prossegui vossas cantigas; / sois como nós da Natureza filhos; / a mãe comum vos deu a liberdade, / sustenta-vos, bem como nos sustenta; / sois fracos, tanto basta; e nós não somos / nem tiranos, nem pérfidos, nem baixos, / para abusar da força: é jus terrível. / Se para vos matar compete ao homem, / para o homem matar compete ao tigre. / Não: vivei entre nós, como entre amigos; / somos todos irmãos: arcos e setas, / redes e visco, passatempos torpes, / não usa quem adora a Natureza; / seriam entre nós nefandos crimes».

António Feliciano de Castilho, A Primavera, pp. 64-66. 1822.